[É MAIS PROFUNDO]
Quê? Subiu? Não acredito nisso, minha nossa senhora.
— James, tá fazendo o que aí meu filho, cê tá loko?
— Quê? Ô, péra aí, é rapidão.
[Oito horas da manhã, periferia da zona sul, o abençoado se enroscando nos galhos da árvore tentando pegar um pipa. Meio de ano é época de pipa na quebrada. Faça chuva ou faça sol, faça covid ou faça dengue, pipa é de lei. Fazia sol, fazia um sol pra cada um, aquele suorzinho escorrendo atrás do joelho. O caso era que não era uma árvore qualquer. Talvez fosse a primeira habitante do bairro, só tinha restado ela. E ela ficou como que uma anomalia saindo de dentro do barranco, só um braçinho dela saindo meio que na diagonal. Somente as almas mais otimistas chamavam aquilo de árvore. A descrição mais comum era aquela madeira velha do barranco, lá. E barranco aqui é no sentido original style de barranco. Barranco não é banco de areia que filho de rico brinca como se fosse gato, areia bem rasinha, porque vai que se afoga na areia, tonto do jeito que é. Barranco, barranco mesmo, pique cordilheira dos andes, himalaia, esses lugares distantes e perigosos dos quais somente Glória Maria voltou inteira.]
— James, sério, desce aí na moral, o padre tá chegando.
[Era um lugar onde os franciscanos faziam uns trabalhos de ação social, coisa e tal. Coisa de milianos, tinha datilografia também, millennials favor googlar.]
— Péra ô, tô quase conseguindo, tá quase aqui.
— Se eu subir aí eu vou rasgar esse pipa todo.
— Cê num é loka.
[Eu era. Melhor, eu fiquei, visto que me deram um grito da janela e eu tive que jogar metade do cigarro fora, tomei um susto, cacete pensei que era o padre, mas era só alguém me dando um recado mal dado: tem alguém pendurado na árvore, tem alguém pendurado na árvore! E bom, vocês devem imaginar o que eu imaginei na hora.]
— Cê tem ideia de quantos ossos você vai quebrar se você cair daí?
— Calma tia, é questão de honra essa porra.
— Se você cair daí eu vou ser presa, cê tá ligado né?
— Eu levo jumbo pra você.
[“Trouxe umas fruta, marlboro, um free.”]
— Cê não vai comer mistura hoje, já tô avisando.
[Parti pra ameaça, mané pedagogia o quê.]
— Para de gorá o time com essas ideia, péra aí, são marcos aqui.
[O parmerênsinho era invocado: essas duas coisas nos unia. Ele era meu preferido, e eu a preferida dele. Ele explicava o mundo através de metáforas sobre futebol.]
[Mais de meia hora, já tava juntando plateia, e o sol, e o calor, nervoso, vontade de fumar, fome, padre chegando, moleque do carái, você previu isso Paulo Freire, você sabe o que é isso Paulo Freire, o que eu faço agora Paulo Freire, é agora que eu tô perguntando, não é depois não.]
Agarrou o pipa, deu um pulo no melhor estilo mogli e saiu correndo com os braços abertos como se tivesse feito um gol, gritando todos os palavrões que o vocabulário humano conseguiu reunir em anos de história. Comecei a chorar. De raiva, de alegria, de emoção. Me abraçou e jogou em mim um obrigada por ter ficado torcendo por mim, olha que pipão cabuloso, olha. Olhei pra baixo, as manchas do suor dele no meu joelho. No prato dele não coloquei arroz e nem feijão. Só salsicha. Um prato cheio de mistura pra ele. Questão de honra nessa porra.