[UMA XÍCARA DE AÇÚCAR PARA EMPRESTAR]

Jordana Machado
2 min readAug 25, 2019

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— Ô menina, teu irmão tá por aí, tá?
— Tá não, só fim de ano, só.
— Ah tá, fala pra ele que eu mandei um abraço.
— Tá bom, eu falo sim, pó dexá.
Mais ou menos uma vez por semana acontece esse diálogo entre eu e o vizinho da frente. Toda semana, é de lei. O vizinho, que tem a casa dele inteira pra ouvir música alta. Então, vai até a garagem e liga o som do carro.

Das grandes alegrias de estar na casa da mãe: reencontrar vizinhos.
Dão pitaco pra você prender ou soltar o cabelo.
Dão pitaco pra você prender ou soltar o cachorro.
Não sabem que essas coisas são como peido: quem decide se prende ou solta sou eu.

Morar em apartamento é ficar ouvindo um monte de vozes embaralhadas vindo de todas as direções. Tem também uns ventos encanados que faz a porta da sala ficar mexendo como se alguém tivesse tentando abrir. Aí cê dá aquela olhada esperta pelo olho mágico que é um negócio tão sutil quanto ir beber água de madrugada e no escuro.
Por que vocês acham que o olho mágico é um negócio que te faz ver de longe algo que está perto? Claramente é pra você não mijar na roupa caso o demônio apareça.

Meus vizinhos produzem muitos sons.
Torcida pra time de futebol, confissões, choros.
Conversas de saudades, gargalhadas, brigas.
Anéis caindo, arrastação de chinelo e infinitas descargas.
Gino e Geno, Red Hot Chilli Pepers e maritacas.
Pedidos de revanche no truco, pedidos de joga a chave aí pra mim e coloca mais água pro café fazendo o favor.
Criança apanhando, chorando, rindo, correndo.
Um casal trocando cócegas e pedidos de desculpa enquanto tomam banho.

Mas aí eu lembro da vida na universidade.
Pela janela entrava todo tipo de som (depois da uma da manhã, claro).
Cavalinho de pau, Jorge e Matheus e Sabotage.
Barulho de treta, de trepada e de chororô.
Blábláblá governista, piada racista e declaração de amor.
Voz de mulheres bem lá ao longe, enquanto homens esganiçavam como gralhas suas verdades patéticas.
Diziam que faz parte da “cultura universitária”, que é normal, que não adianta achar ruim.
Quando um militante fetichiza a classe trabalhadora ele não consegue enxergar que essa classe muitas vezes procura os aluguéis mais em conta dos bairros universitários; ele não consegue enxergar que essa classe está no andar de cima ou no bloco da frente tentando dormir porque vai trabalhar no dia seguinte, enquanto é obrigado a escutar jogo de verdade ou desafio às três da manhã de uma terça-feira.

Molecadinha do primeiro ano de Sociais, sabe como é. Todo mundo muito descolado, muito artista, muito marxista, cabelinho pra cá, violãozinho pra lá.
Então acontece de alguém vomitar pela sacada.
Acabaram de sair das fraldas, até um tempo atrás eram as mães que limpavam suas sujeiras, agora são as trabalhadoras da limpeza do prédio.

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[Literatura entre colchetes] Instagram: jordanamachado1

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