[UMA MÚSICA PARA MIM]
A senhora acordou, se desenrolando dos lençóis e dos cabelos que fizeram voltas em seu pescoço durante as viagens do sono. Desenlaçando a camisola e dobrando com a ajuda do antebraço, retirou o xale do baú e o segurou estendido frente ao corpo, preparando-se para fazer o movimento de girar o braço direito por cima da cabeça, o que faria a lã repousar nos ombros como tem de ser. A porta do quarto está entreaberta, pensa que o motivo deve ser o vento da noite, e se achega até a janela também já acordada. Um pedaço de sol forte faz ver as mini pelugens que vão levantando voos do xale. Fecha os olhos para que o clarão a faça ver por debaixo da carne dos olhos dezenas de desenhos que parecem tapetes e caleidoscópios. Senta na banqueta da penteadeira e passa os olhos em suas coisas, olha para o espelho, passa os olhos em si. Escuta as vozes das meninas pela casa e sorri um sorriso por dentro.
Depois de estudos e anotações, pude saber com exatidão quais eram as horas em que a senhora fazia as coisas. Mas só era de meu interesse o instante em que ela acordava. De posse dessa informação, consegui me organizar para me adiantar à ela, estar lá quando ela ainda não estava, para conseguir ver o que não era possível em outros momentos. Eu queria ver quem era a senhora quando eu e a meninas não estávamos por perto, o que ela fazia, como fazia, e porquê. Se ela levantava depressa ou se ficava manhosa, se dormia todas as noites do mesmo lado da grande cama, se tinha conseguido fechar o livro antes de pegar no sono. E o principal: a penteadeira. O meu fascínio, depois dela, era aquela penteadeira, mas sobretudo, o verdadeiro delírio era o conjunto que se formava entre ela e a penteadeira. Arquitetei esse plano de, todos os dias, minutos antes da senhora acordar, pé ante pé, respirando pouco e tentando tirar todo o peso do corpo para quase voar, entrar no quarto dela e abrir meia janela, voltar, e deixar a porta com um espaço que coubesse apenas um dos meus olhos.
Na penteadeira, a senhora ajeitava o tronco como se houvesse um encosto invisível na banqueta. E apesar da idade, ela conservava uma postura que fazia o xale estar como se estivesse num varal, exato, mas ao mesmo tempo maleável e aberto. Com a ciência de quem conhece o próprio corpo, a senhora ficava um tempo assim, cuidando para acertar o movimento e não sentir dor, pois foi um longo caminho percorrido até aprender a evitar as dores que podia, sem iludir-se em controlar as que não tinha como. Corria os dedos pelos objetos, tocando cada um deles com as pontas dos dedos, como que dizendo estou aqui mais uma vez. O copo com água, livros abertos por cima de livros fechados, o par de brincos, a margarida, as partituras protegidas por um papel de seda e um papel pardo.
Nos primeiros dias da minha aventura, a sorte de principiante me agraciou, e eu vi muitas coisas. E senti, eis o meu desalinho, o meu caldeirão, o meu tremor. Sentir me era uma novidade, pelo menos estes sentimentos que não conseguia dar nome, pois eram bem diferentes de sentir sono, fome e medo. Ela acordava quando eu sabia que acordaria, e executava uma dança com pernas e braços a se desvencilhar dos enroscos dos lençóis, tudo delicado e firme, decidido, gracioso. Sentava na cama a desatar os cachos do pescoço e eles pareciam contas prateadas enfeitando a senhora. A camisola, na hora da camisola me batia forte a sensação de que era um erro ver o corpo da senhora sem ela saber que eu estava vendo, mesmo que fosse só com um dos olhos; e na minha cabeça, se isso fosse um tipo de pecado, como era só com um olho, talvez fosse tido só como meio pecado, então não me seria tão difícil receber a metade de um perdão. Viviam nos dizendo que era bom sonhar, mas que haviam sonhos bons e outros ruins. Percebi rapidamente que eu era muito boa em sonhar, e o que eu podia fazer se meu sonho era a senhora, essa senhora havia se transformado no meu sonho, na verdade eu já sonhava com ela antes dela existir, então foi como uma aparição, um sonho realizado, eu pedi e o sonho aconteceu. E por fim o xale na senhora e a senhora na janela, o sol sobre a senhora e seu xale, meu único olho de testemunha da cena mais linda e poética, meu coração na garganta, depois na boca, depois em minhas mãos, me desequilibrei, era muito esforço segurar o coração e as palavras, esbarrei na porta e caí de joelhos. Fiquei ali prostrada diante dela, que se virou com o barulho, ela me viu, ela ali com o sol em sua retaguarda, as pelugens, a cabeça prateada, uma santa, uma feiticeira.
A senhora não esperava visitas mas nem por isso houve incomodo ou surpresa, porque assim são as boas visitas, que chegam sem anúncio, ou por serem já bem vindas da casa, ou por serem aquela espécie de vento que vira os ares pelo avesso. Entra menina, entra. A senhora sinalizou e foi voltando pra banqueta. A menina entrou devagar, um pé depois o outro, na ponta dos pés como já estava habituada a fazer, e sentou no tapetinho próximo à penteadeira. Não houve palavras entre elas. A senhora pegou uma caixa cheia de papéis coloridos, e foi separando as cores, folhas azuis com folhas azuis, folhas brancas com as brancas e todas as outras cores com seus devidos pares; e estendeu um bocado desses papéis para a menina que foi imitando o que a senhora fazia. Enquanto a tarefa acontecia, a senhora abriu uma outra caixa com chocolates dentro, mordeu um e deu a outra metade para a menina, mordeu outro e deu a metade. A menina correu até a cozinha, tomando cuidado para não chamar a atenção das outras meninas e perder a senhora que era só sua, alcançou duas xícrinhas, pôs dois dedinhos de café, voltou pro seu castelo que era o quarto da senhora, estendeu uma das xícrinhas, pegou a sua e molhou a metade de um chocolate no café, ficou passando o chocolate derretido na boca fingindo que era um batom. A senhora fez o mesmo, começou a imitar a menina, e elas sorriram, e a menina foi feliz. E foi feliz, e foi feliz, e foi sendo, e estar no mundo da senhora e ver que a senhora também entrou no seu mundo, foi o que a menina chamou de sentimento de felicidade. A senhora era uma emoção, um frio na barriga, uma curiosidade, uma vontade de chorar no meio de uma frase, um pensamento que não descansava, um querer dormir junto.
Eu queria que a senhora me amasse como eu amo a senhora. Queria que a senhora me ensinasse todas as belezas que conhece, porque eu queria ser bonita como você, ter o seu cheiro, queria que as pelugens das minhas roupas também dançassem pra mim, e me sentar na banquetinha do piano como você se senta, sabendo como não sentir dor, fazendo essas caras e bocas que você faz, e eu sei que você está sentindo coisas quando faz isso e assim com o rosto, e eu também quero sentir, quero saber, quero ser. Queria que a senhora pegasse meus cadernos e olha só que letra linda é essa que você tem, e que coisas tão lindas estão escritas aqui, será que você poderia escrever alguma coisa para mim? E eu já tinha escrito. Desde o primeiro dia que vi a senhora eu te escrevi. Poemas, cartas, bilhetes, olhei em todos os meus livros e vi que em cada um deles tinha algo bonito que parecia o mundo da senhora.
Os papéis foram arrumados, os chocolates foram saboreados, e a senhora chamou a menina para descer as escadas. A senhora estava chamando a menina, e para onde quer que fosse a menina iria. Desejava não mais ter que ficar passeando em frente a porta da senhora para ser notada, e um dia leu que não se faça presente demais porque a ausência dá saudade e sem saudade não há vontade, mas a menina não queria desaparecer, ela queria ser chamada. Vamos menina, vamos descer. Ela sentou na banquetinha do piano e disse: menina, o que você quer que eu toque? E a menina respondeu: Hier Encore, do Charles Aznavour.