[UMA HISTÓRIA DE AMOR IMAGINÁRIA E RUIM NA FILA DO MERCADO]
“Vestígios de estranha civilização.”
Tive um sonho e lembrei de você. O que é a materialidade das coisas diante de um sonho? Alguma coisa não existe mais lá fora e continua dentro de nós. Algumas pessoas sofrem um acidente e morrem. Outras, mesmo vivas, assinam um atestado de óbito e enfiam debaixo da nossa porta dizendo que não querem mais viver ali. É como se nossa cabeça fosse uma fita K7 aonde vamos gravando novas músicas uma por cima das outras. Quantas canções ainda precisarei gravar por cima de você? Meu ouvido absoluto ainda escuta o seu gemido, e sua risada e os seus gritos.
Esses dias eu estava num mercadinho aqui da minha vila. Você tinha uma mania insuportável de ficar lendo os rótulos dos produtos. Fiquei passeando pelos corredores, deslizando minhas mãos sobre os pacotes. Parece que cada bolacha que eu quebrava me redimia de tudo que eu deixei você fazer comigo. Só naquela noite decidi fazer alguma coisa sem sua aprovação, deixei o carro na rua e não no estacionamento. Um revoltado estilhaçou meu para brisa com um coquetel molotov enquanto você se ocupava de sódio, e gordura trans e fibras. Sentei na calçada e comecei a dar risada, eu estava contente por ver que minha revolta tinha encontrado a revolta de outra pessoa. Num excesso de emoções comecei a bater latas de ervilha e milho no que restou do carro. Um senhor com sua barraquinha de comida assistia tudo de boca aberta. Pedi uma pamonha pra ele, olhei pra você e disse que aquilo sim era comida de verdade. Você me mostrou o dedo do meio e acendeu um cigarro.
No muro da sua casa tinha uma pintura de uma mulher velha. Todo santo dia eu passava por ali e ficava imaginando que tipo de pessoa penduraria um quadro num muro. Depois que eu te conheci acabei descobrindo que tipo de pessoa é essa. E descobri que esse tipo de pessoa não dá pra conhecer. Ao anoitecer você era flores de Monet, na manhã seguinte se transformava num cinismo de Dalí. Seu sonho era viver como nos filmes. Tomamos um banho de tinta verde e escorregamos no gramado. Masturbei você com um pincel, e engoli tanta tinta enquanto te chupava que acabei tendo uma intoxicação.
Te olhei bem de perto e você era uma bagunça. Uma mistura de caçamba de entulho, com terreno baldio e quarto de adolescente. Dobrei minhas mangas e comecei a varrer e carpir. Algumas vezes as coisas ficaram mais claras, quase cheguei a pensar que te conhecia, que sabia quem é que estava ali debaixo da iluminação dos filtros das fotos. O que você tenta esconder com a exposição? O que você quer expor que ninguém enxergou antes?
O quadro ainda está no seu muro. Da outra esquina continuo sentindo a senhora me olhando. No começo eu acenei, você acenou de volta, sorriu e foi embora. Agora a sua lembrança é como o cachorro que fica me seguindo pela casa. Aonde eu vou o cachorro vai atrás. Quando penso que ele pegou no sono, saio na ponta do pé, mas ele vem correndo. Você é como o cachorro me seguindo, no começo é engraçado, eu gosto, depois começa a ficar chato, começa a cheirar mal, dá coceira. A trilha sonora disso é como um chorinho, com uma letra própria de esquecimento. Muitas pessoas te admiraram e agora haviam te esquecido. Você se tornou um nome anônimo numa música do Chico Buarque.
Guardei todas as suas fotos. Algumas nem fui eu que tirei. A maioria tem até dedicatórias no verso. Te dedicaram versos. Quantas pessoas miseráveis marcadas por você devem estar por aí perambulando atrás de uma saída do labirinto. Imagino um bar cheio de gente velha, de fundo está tocando um velho choro que faz coro com os lamentos dos desgraçados pelo passado que não passou.
Parecia que só eu podia ouvir, mas o mercado inteiro estava ouvindo que seria necessário que eu pagasse por todos os pacotes de bolacha que quebrei. Você ficou ali me dizendo que hoje ninguém mais liga pra nada, que ninguém mais reconhece o trabalho das pessoas. Comprei umas fitas K7, milho, ervilha, uma lata de tinta verde e ração pro meu cachorro. No som do carro o Chico Buarque me dizia que não era pra eu me afobar, que nada é pra já.