[‘TODO DIA ELA FAZ TUDO SEMPRE IGUAL’]
O dia começa e é aquela velha história do copo meio cheio ou meio vazio. Acordo na hora mas fico ali cochilando e esperando o momento de me atrasar. Me atraso. Faço tudo correndo e me culpo e me irrito por isso. Saio do banho com o cabelo meio seco e meio molhado e imagino que isso vá confundir as pessoas, ninguém vai saber ao certo se lavei o cabelo e ele está secando ou se tomei banho rápido e respingou água na parte molhada. Claro que vai ter aqueles que vão pensar no bom e velho ela acabou de sair do motel. Nunca fui num motel e claramente essas pessoas não assistem novelas, pois caso contrário saberiam que ninguém mais dá essa brecha. Pra que pagar motel se posso transar na rua? Pra que transar se posso dormir? Questionamentos que já me confidenciaram, as pessoas dizem coisas, você sabe. Também não deu tempo de raspar a axila e já imagino aquele espeta-espeta me futucando nas próximas tantas horas, junto com meu calo no mindinho do pé direito. A palavra mindinho me lembra amendoim, curiosamente os mindinhos dos pés se parecem com amendoins, enfim, você vai esperar o que de um corpo que tem amídala e apêndice.
Não ouvi notícia. Não passei café. Saio de casa mordiscando um pedaço de pão velho. Respondo o bom dia da vizinha que me chama de Giovana. Juliana, Morgana, Joana, terminou em ana eu atendo porque possivelmente seja eu. Noto que mais uma vez estou toda de azul marinho e quase me sinto uma jovem colegial, mas como já não existe colegial (e quem sabe por quanto tempo ainda existirá ensino público, mistérios) e eu também já desenvolvi uma obsessão por palavras cruzadas e meias, pronto, acabou o sentimento. Vou para o trabalho a pé, vou olhando as placas de aluga-se e tendo mini infartos a cada moto que passa. Chegando lá finjo que não estou atrasada, mas os olhares não me deixam esquecer, mas daqui a pouco esqueço pois só posso pensar na parmegiana de logo mais. E na lata de coca cola porque hoje é sexta e todas as sextas eu tomo refrigerante e só paro na segunda.
A partir daí é o que chamam de vida que segue. Entro numa sala com 23 crianças chorando ao mesmo tempo. Tirem suas próprias conclusões. Penso na próxima temporada de Peaky Blinders. Problematizo o capitalismo pela quarta vez e evito a antiga treta diante do a mãe chegou aqui falando gíria e não dá pra respeitar, então só penso mano seguido de reticências. Foco na parmegiana. Escapo pra fumar um careta e vejo uma árvore carregada de caquis. Penso em sair correndo e gritar pra todo mundo ir lá ver também, felizmente mudo de ideia.
Acabo numa sessão da câmara e no segundo fulano na tribuna meus olhos já reviraram tanto que já não posso certificar a normalidade da posição do meu globo ocular. Verifico a cor do xixi, do cocô, do catarro e do céu. Tudo parece ok, exceto a cor de uma cutícula inflamada que me faz não ter certeza se terei mesmo dez dedos nas mãos até o fim do dia.
Chego em casa e decido escrever o próximo finalista do jabuti mas sai uma fanfic.