[SETE DIAS INÚTEIS]
‘Não devo, não temo, dá meu copo.’
As casas mal construídas faziam parte de uma paisagem que era sistematicamente afastada. Quando era dia de festa no país tentavam cobrir tudo com tapumes, desvios no trânsito e notícias sobre aonde fazer caridade. No sábado as pessoas se reuniam pra bater uma laje, a carne assava na churrasqueira, o conhaque queimava as gargantas, os pés ágeis desenhavam histórias no chão. No domingo as pessoas se reuniam para enterrar alguém, a revolta fervia as lembranças, as lágrimas salgavam os olhos, as mãos cansadas suplicavam piedade do céu. Nada poderia esconder completamente as alegrias e dores.
Crianças surradas antes de dormir no outro dia gritam no meio das ruas, subindo e descendo as ladeiras, conhecem todo mundo e cada pessoa sabe exatamente o que esperar de cada uma delas. Dependendo de quais estão por perto é possível entender o que está acontecendo, se é hora de ir comprar pão ou a entrada da escola. Quando todo mundo desaparece você pode contar no relógio, não dá nem cinco minutos e os fogos começam a estourar.
Desde criança meu sonho é ir em Nova York. Eu nem sabia direito aonde era, só sei que eu via bastante o Brooklyn em filmes. Aquelas casas de tijolinhos com escadas na frente. Me imaginava andando por lá com meu par de Jordan’s novinhos e uma garrafa na mão embrulhada num saco pardo. Talvez aqui não seja muito diferente. Os taxistas também não aceitam te trazer, isso quando você consegue entrar em um. Fiquei sabendo que os jovens ricos inventaram de ir morar pra lá e tudo começou a ficar caro.
De repente todo mundo começou a se vestir como se estivesse em outro século ou prontos para derrubar árvores numa floresta. Mas ainda continuo querendo meu par de Jordan’s. Se eu tivesse emprego teria que trabalhar muito pra conseguir comprar um. Fico pensando que as pessoas compram tanta roupa que acabam ficando com vergonha na hora de tirar. Com esse calor desgraçado que faz aqui por mim eu andava sem nada. Minha mãe ganha várias roupas usadas da patroa, e meus amigos revolucionários zombam quando me veem com artigo de grife. Na época da faculdade vendi quase tudo pra pagar o aluguel e tomar cerveja.
A embriaguez como uma suspensão dos moldes que permite desfilar os próprios modelos do inconsciente. Algum tempo de porta aberta sem vigia. Um passeio interno com o pedal quebrado do freio. Uma incapacidade de pular as folhas que não se quer ler. Os olhos estão realmente abertos e não há possibilidade de fingir que não viu ou que não entendeu. Naquele triste fim de festa alegre receio não me alcançou. O silêncio do adiantar das horas e a má iluminação do mundo não me atemorizaram e eu corri. Coragens em latas de 350ml. Saiu da casa de dois em dois degraus como se tivesse visto o demônio. Ocorreu-me então que esta era a receita precisa para os dias úteis. Errei.
Uma corda invisível no pescoço de cada pessoa que passa. Anda-se por escombros cada um a tremer-se dentro das carnes. Pede-se letras de gracejos com uma xícara sem a asa nas mãos. Falta um pedaço em cada pedaço. Falta dente na boca porque cada grito não dado era um dente que adoecia. Cada gole tomado era um gatilho não apertado mas queria.
Nós construímos os prédios, limpamos as janelas, servimos mesas, ligamos na sua casa para cobrar faturas em atraso, vendemos chips de celular pelas ruas. Esse ano fomos numa praia que disseram que não podíamos ir. Pulamos as poças de sangue que se acumulam nas nossas portas. O carnaval é nosso, a música, a comida, as roupas, as gírias. Contam nossa história em filmes que são exibidos em cinemas há duas horas e meia das nossas casas.
Toda a gente que ainda esperava alguma coisa estava vagando pelas ruas e eu também estava lá. Quem conseguiu se segurar em algum pedaço de certeza estava a essa hora vivendo as aventuras da fase RAM do sono. O lado de fora era um mar de talvez escorregadio, e aquele sabão purificador e limpante ia formando camadas densas de uma espuma tóxica. Os afogados se sabiam sem ar, mas não conseguiam entender como aquele macio e branco poderia ser o que já havia se mostrado. Prendiam a respiração e afundavam um pouco mais porque ainda dava pé.
Quatro dias de angústia para um de expurgo. No último dia os carros saiam a se chocar com os postes. Os telefones tocavam de madrugada. Palavras de amor e ódio formavam nuvens que encobriam o céu de todas as cidades. Alguns dançavam sozinho dentro dos apartamentos, outros pulavam de pontes, outros enfim conseguiam chorar.