[SALVADOR, MAIO DE 2005]

Jordana Machado
2 min readAug 26, 2020

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Oi, mãe.

Será que isso daqui é cedo demais? Sei que são só algumas horas e nem faz tanto tempo assim, mas hoje eu sonhei com caldo de abóbora e encasquetei que isso era um sinal pra te falar. Bem que você tinha dito que tudo ia mudar. Até esses dias mesmo meu mundo estava de cabeça pra cima, mesmo com minha cabeça nas nuvens. Você sempre diz que sonhar demais um dia poderá me confundir e eu já não vou saber se estou dormindo ou não. As coisas não estão de cabeça pra baixo, eu é que estou de barriga pra cima, mas nem é debaixo da nossa mangueira, mas um pouco parecido com aqueles tatu bola que você também dizia que não podia pegar porque dava doença. Brinquei com eles às escondidas e cogito que possam ser os culpados pelas minhas patinhas que balançam pelos ares sem conseguir rolar.

Se é cedo demais ou se é tarde demais, já não é tão fácil saber. As janelas aqui até que são bem grandes, mas só duas partes delas é que dão pra abrir, e isso se parece um pouco com a sensação de estar com o nariz entupido, porque o que é que adianta ter um nariz grande sendo que só há duas aberturas? Lembro que aprendi isso daí na escola, de como as coisas são bem maiores por dentro. Seria melhor então se a gente se virasse do avesso e andasse por aí. Quem vai saber se isso faria ou não com que a gente se gostasse mais? Com o lado de dentro pra fora, as tripas seriam como que umas samambaias de folhagem amarela-avermelhada. Você precisa de ver como são as couves aqui. Um preço alto, todas bem alinhadas num maço parecido com um leque e sem nenhum comichão. Caíram para o patamar do alface, porque todo mundo sabe que alface nada mais é do que uma folha de caderno velha e molhada que jogaram num pote com um resto de tinta verde que não servia pra mais nada.

Que saudade de usar meu chinelo, mãe. Lembra que tirávamos sarro sobre qual pé era o mais rachado? Você não reconheceria meus pés hoje. Assim como não reconheceu naquela tarde em que eles estavam tão sujos, e sua voz perguntava por mim, e como eu não respondia você começou a chamar, e como o silêncio continuava o seu jeito foi gritar e correr porque a gente aprendeu junto que correr mesmo sem saber pra onde também é jeito, e lá estava eu debaixo da mangueira, me abraçando e me camuflando. Naquele dia eu fui terra.

Mãe, quando me sinto só fico olhando pra parede e faço desenhos com os olhos até dar tontura e é assim que adormeço. Fica de olho na parede por aí também, quem sabe nossa imaginação possa se encontrar. E se chover esse ano não esquece daquela quina aberta no teto, não quero que molhe o quadro de Nossa Senhora.

Um chêro,

Paloma

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Written by Jordana Machado

[Literatura entre colchetes] Instagram: jordanamachado1

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