[RETROSPECTIVA DE UM TRABALHADOR]

Jordana Machado
4 min readNov 27, 2017

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365 dias de sonhos e tretas

Daquele dia em diante tudo ia mudar, sempre amanheço com esse pensamento dentro da cabeça. As coisas que estão dentro da gente, principalmente na cabeça e no coração, também acordam de manhã. E vem tudo junto fazendo aquela zuada no pé do nosso ouvido, às vezes também dá um arrepio assim no cangote. Se bem que nem dormindo a gente tem sossego, porque a gente sonha. Um monte de gente com estudo já explicou o que é sonhar. É fácil sonhar quando estamos dormindo. Acordado é que a coisa muda de figura.

Geralmente derramo a água em três colheres de café, mas hoje foi em uma, pra economizar. Comi a metade do pão que tinha, molhando ele no café, que nem criança. Nem sei se as crianças de hoje em dia ainda fazem assim. As criança hoje tão muito modificada. Nem deve dá tempo de comer, só ficam nesse diabo desse celular. A gente precisa de ter uma calma muito grande pra sentar numa mesa por uma meia hora e tomar um café com a gente mesmo. Não é fácil ficar ali sentado, ouvindo a respiração, o barulho da comida descendo. Perdemos esse costume de prestar atenção nas coisas. A gente foge do que faz a gente pensar. Quando a gente vira adulto não é muito diferente, é assim que a gente fica: com medo, inquieto, desatento, sem tempo pra comer, e às vezes até sem ter o que comer.

Faz mais ou menos uns seis anos que eu fiquei sem ter o que comer pela primeira vez. Antes disso sempre teve pouco mas nunca faltou de verdade. Atravessei o país com o sonho de que esse pouco virasse muito, mas o que acabei achando nesse dia foi nada, nem água, nem café e nem a metade do pão. Eu estava sozinho e acordado. Desde o dia em que cheguei nessa cidade eu me assombro muito com o vento que faz aqui. Tinha dia que eu ficava achando que o nosso trabalho podia vir pra baixo de tanto que ventava. No começo eu achava engraçado o barulho que fazia e as moças tentando manter a saia no lugar. Depois de um tempo esse vento trazia areia pros meus olhos, e eu ficava desejando que a sua força saísse me arrastando até que eu pudesse voar e ir embora dali. Mas o ônibus era movido a gasolina e não a vento, a passagem custava trezentos reais, não tinha jeito, se eu tinha vindo eu tinha de ficar. E fiquei.

Não sabia se eu tinha vindo pra ficar, mas acabou que fui ficando e parece que no fim eu fiquei. Entender os caminhos que a vida vai fazendo não é coisa fácil, tem dia que eu largo de mão, aperreado até as tampas. Mas eu nasci metido a querer saber o motivo das coisas, e isso me põe maluco porque entender não depende só de nós, depende das outras pessoas também. Estamos sempre dependendo de pessoas e nisso a gente pode ter sorte ou azar. Quem depende de mim tem azar, inclusive eu mesmo. Mas o mais acertado é que eu dependo mais das pessoas porque sou pobre e sentimental.

Quando eu era criança direto tinha um pesadelo repetido. Sonhava que eu, meu irmão e meus pais tentávamos atravessar uma ponte muito velha, e que do outro lado estava o restante da família, e lá tinha tudo, comida, água, roupa bonita e plantas, enquanto a gente do outro lado estava até pelado. Daí que no meio da travessia chovia os sete mares na nossa cabeça, minha mãe pisou em falso e caiu e a gente acabou preso lá em cima, do lado ruim, e pelado. Nunca na minha vida me esqueci desse sonho. Hoje eu sei que o jeito que as coisas são nesse mundo é a tempestade, que minha mãe caindo é as coisas e pessoas que dependemos e vamos perdendo, que o outro lado bonito é o que a gente sonha, e que eu continuo pelado.

Pelado mesmo, sem ser na hora de tomar banho, eu só conseguia ficar com ela. Eu tinha uma verdadeira alucinação por ela. Talvez tenha sido mesmo uma alucinação e tudo só tenha acontecido na minha cabeça. Se bem que tudo foi tão grande e rápido que ficou mesmo parecendo foi um tiro. Pra cada mulher que eu conhecia eu dava um nome diferente. Cada uma delas tinha uma música, eu nunca cantava duas vezes a mesma música. Mas não era por maldade e nem nada, eu só queria ser uma pessoa diferente. Não sei se elas iam gostar de quem eu realmente era. Nem eu sabia mais quem eu era. Mas pra ela eu fui de um tudo depois de meia dúzia de garrafa de cerveja. Uma vez um médico me disse que eu era dependente de álcool. Isso porque ele não sabia do que aquela morena era capaz de fazer com minhas tripas e meu coração. A bicha tinha umas pernas lindas demais. Eu beijava os pés dela, tinha dança xamegada na cozinha e ela de quatro tinha sido a melhor visão do meu ano.

Apesar de uma coisa aqui e outra ali eu não posso reclamar, não. Quer dizer, eu até posso e devo, mas não é pra tanto. Por agora é o que posso. Aprendi bastante coisa e ando sempre esperto pra aprender mais. Pessoal costuma achar que a gente que nem eu não sabe é de nada. Fazem até piada com o cigarro que a gente fuma. Eu faço é miséria com minha trena, enquanto muito marmanjo endinheirado que a gente escuta por aí só quer saber de medir o tamanho do pau. Até poesia eu sei dizer, bem decoradinha, sem errar. A gente também tem sentimento, junta aqueles trocados pra comprar um panetone, o olho enche de água quando o Roberto Carlos começa a cantar na TV. ‘Hoje, é um velho dia, de um velho tempo, que reprisou. Nesses velhos dias, as alegrias, serão de poucos, dá pra prever. Todos nossos sonhos, serão vetados, o futuro, nunca chegou.’

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[Literatura entre colchetes] Instagram: jordanamachado1

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