[QUERO UM CACHORRO]
Um menino de doze anos acorda e declara: quero um cachorro. Já faz um tempo que ele acorda e declara. Em vão. Insistente, esperançoso em sua empreitada, mais um dia começa com uma nova tentativa de ganhar um combatente para sua luta. Lá vem ele fazer trabalho de base pro meu lado. Por essa eu não esperava.
— Fala Gustavo, o que você quer, Gustavo?
— Quero falar com a Joana, ela tá aí?
— Tá sim, tá no viva-voz, pode falar.
— No viva-voz eu não quero, é particular.
Recebo um olhar de fala com ele, não custa nada. Custa. Custa sim. Acabei de acordar. Não gosto de falar no telefone. Só falo com minha mãe e operadores de telemarketing, e os trato com toda cordialidade que possuo pois é impossível fugir de mães e operadores de telemarketing. No começo não gostava de áudio, mas fui arrebatada quando atentei ao fato de que a ferramenta poderia me dar a oportunidade de pensar antes de falar ou voltar atrás no que tinha dito. A vida não costuma dar essas chances, era preciso aproveitar. Eu ia atender o menino, mas seja lá o que eu respondesse para seja lá o que ele dissesse, certamente terminaria a ligação com a certeza de que era melhor ter sido por escrito ou por áudio. Era sempre assim. Atendi o menino.
— Fala seu Gu, como que cê tá?
— Oi Joana, eu estou bem.
— Diga aí o que acontece.
— Joana, eu vim conversar uma coisa com você, vou explicar, mas promete que não vai rir.
— Prometo.
[Respondo com pouca convicção, já rindo um pouco por dentro ao constatar que seu pedido demonstrava que me me conhecia um pouco, que bonitinho.]
— Quando a gente vai viajar aqui em casa, é você que fica cuidando da Nina, correto?
— Correto.
— Se por um acaso em tivesse mais um cachorro, você cuidaria dele e da Nina quando a gente fosse viajar? Queria que você me ajudasse a convencer sua mãe a aceitar, porque ela não quer aceitar. Ela é muito brava, você sabe.
Joana colocou a ligação no viva-voz quando percebeu a própria voz fazendo eco, sinalizando que o mesmo se dava do lado de lá. Já tinha uns meses que semanalmente chegavam alguns informes sobre a novela quero um cachorro, por favorzinha. A mensagem de todos os envolvidos era clara: alguém por favorzão convença esse menino a mudar de ideia. Convencer um menino de doze anos a não querer um cachorro. Era assim que Joana compraria sua vaga no inferno.
Em poucos segundos tive que me posicionar no tabuleiro. Metade de mim era ainnnnn, poxa. E a outra metade era affff que frescura desse moleque. O momento pedia que eu desligasse ambas as chaves e, habilidosamente, ajustasse o discurso à faixa etária, tanto a dele, quanto a minha, como se pode observar. Pior do que convencê-lo a não querer um cachorro, era lembrá-lo que ele já tinha um cachorro. Ele parece se esquecer bastante das coisas. Se esquece de fazer a lição, de tomar banho. Também esqueceu do patinete e da mesa de DJ. Doze anos, o início da adolescência, o triângulo das bermudas da existência se aproxima à ventos velozes. Ele também é o irmão do meio buscando num cachorro um carinho que um dia foi só dele. Tinha também um pouco de capricho de menino rico ali? Uma parte de mim achava que tinha também, tinha sim. Como jogar 34kg de luta de classes em cima d’uma criança de maneira delicada e construtiva? Não seria ruindade, afinal, muitas crianças bem mais novas do que ele já conheciam o capitalismo em sua versão 150 bpm full hd 1080 4K, e do lado mais desconfortável do jogo. Não dava mais tempo de pensar. Abri minha boca e deixei meu coração falar o que minha subjetividade permitia diante de um telefonema.
— Então Gu, tenho duas coisas pra te falar sobre isso, vâmo lá.
— Certo.
— A primeira é a seguinte. Você sabe que aqui em casa mora a minha mãe, o Vitor e eu. E quando a gente mora com outras pessoas é preciso ter combinados e acordos entre todos, pra que nossa família não brigue, e pra que ninguém fique triste um com o outro, sabe. Então não depende só de mim, entende. Se minha mãe não aceita, as coisas ficam um pouco mais complicadas.
— Entendo.
— E você já tem a Nina, né Gu. A Nina foi um presente que seu pai deu pra sua mãe. É uma coisa bem bonita isso, e você participa disso. Eu gosto muito da Nina, e me preocupo com ela. Talvez ela sinta sua falta. Já pensou nisso?
— Sim, entendo.
— E a segunda e última coisa Gu, é que você sabe que estamos todos num momento bem novo e difícil, né. Será que não seria o caso de pensar um pouco mais e voltar a falar no cachorro quando tudo isso melhorar? O que você acha?
— Entendo. Tá bom, então, Joana. Tchau.
— Tchau, Gu. Fica bem.
Ele desligou com aquele tom de quem não sabe mais como manter a conversa, mas também não sabe direito como terminá-la. É assim que também terminam todas as ligações telefônicas. Gu ficou com a sensação que se fica quando um aliado em potencial se torna um não aliado. Joana ficou com a sensação de que não conseguiu falar o que queria, ou nem tudo o que queria, ou se queria, ou se poderia. Joana ficou problematizando, que é o que se faz depois de telefonemas e depois de tudo o que acontece debaixo do céu.
Fiquei pensando nele o restante do dia todinho. Acho que vou mandar um áudio. Mandei. Segue a transcrição.
[Transcrição do áudio]
Dois risquinhos azuis, parece que ouviu. Meti onze minutos e cinquenta e três segundos de áudio nas canela do menino. Comigo é assim. Ouvi meu próprio áudio e chorei. Imaginei ele deitado na cama pensando nos doze anos da sua vida, se perguntando porquê, porquê. A inutilidade e a beleza desse ato. Vi que tentou alguma resposta, apareceu Digitando… Desistiu, não respondeu. No outro dia recebo a notícia de que logo cedo ele ligou para o Vitor. O Gu é embaçado, ô moleque do carái, viu. E sorri. Tocou uma música no radinho de pilha da cozinha. ‘Mas pode ficar sossegado, tudo que eu tô bebendo eu tô pagando, toca aí um João Mineiro e Marciano, tô sofrendo mas tá passando.’
Vai passar, Gu.
Vai passar.
Digo mentalmente pra ele. E pra mim, também.