[QUERIDO DIÁRIO]

Jordana Machado
4 min readJun 9, 2021

Olha, não é por nada não. Mas eu sou antropólogue, já vi muito feitiço nessa vida. Coisa braba, doença, morte, pesadelo, vira bicho, amarração para o amor. Mas essa mandinga de não me tirar de São Paulo, putaqueparil. Não consegui ir embora hoje e não consigo nem começar a te explicar o que foi que me aconteceu.

Olha, não é por nada não, mas eu sou sociólogue, já vi muito erro de análise de conjuntura, erro rude, atraso de política pública, sucateamento de equipamentos, mas essa travada na terra da garoa é coisa que nem caetano explica, só o invisível mêmo.

Acho que eu tenho uma sina de anjo exterminador, tava pensando aqui. Uma vez eu tava no Goiás me deu uns cinco minutos, resolvi vir pra São Paulo. Ocorre que…

Era o auge da greve dos caminhoneiros.

Meu jipe bateu na reserva eu tava em Catalão, que foi a primeira cidade onde bateu o trem de ferro do lado de lá do Paranaíba. Bateu e ficou, num foi adiante. Também foi o lugar naquele tempo do ronca, o Bernardo Guimarães, escritor acho que escreveu escrava Isaura. Ele foi nomeado juiz da comarca, chegou lá deu ordem pra soltar os presos tudo porque achou a cadeia muito indigna, enfim, Catalão. A porteira do Goiás. Fiquei lá dez dias sem gasolina, num ia pra frente nem pra trás, num hotel que era a base do piquete dos caminhoneiro grevista. E que tinha uma tv no saguão que ficava passando Transformers no repeat. Naquele tempo eu tentava chegar em São Paulo e não conseguia, agora é o revés.

Isso do Transformers eu não sei, você que é sociólogue mim explique. Sociólogue que gosta de piquete, na antropologia o povo gosta é desse negócio de virada ontológica, perspectivismo amazônico, transespécie. Tenho uma história anjo exterminador transespécie. Mas tem uma parte 18+, cenas gráficas, precisa daquele parental advisory. E é meio longa. Vou contar só um pedaço.

Eu tava na Guyana numa aldeia no meio do rolê e minha muié ia defender o mestrado e eu tinha que vir embora, olha só, pra São Paulo. Só que a aldeia era longe demais de qualquer coisa, três dias andando até a estrada mais próxima que por sinal é a única estrada da Guyana que os milico brasileiro construíram quando foram dar um golpe lá no revolução, a Guyana era comunista né, a única soviete sul-americana. Aí essa estrada foi feita, assim, bem a brasileira né. A Guyana tem duas cordilheiras e uma planície no meio, os bicho meteram os trator e pau na máquina, não puseram uma manilha, não fizeram uma calha. Aí chove na cordilheira acontece o quê? O país vira uma banheirinha.

Cheguei na estrada num tinha nada passando, fiquei acampado, alguém passou num burrico disse que por causa da chuva carro, caminhão num tinha. Tinha uma rede lá armada e eu fui ficando, tava sozinho no mato, um calor do diabo, um dia fiquei peladão na rede lá, tudo certo. Só que bem nessa hora eu peladão passou um caminhão cheio de gente e eu tive que sair correndo, vesti a roupa assim mandei a cueca de qualquer jeito uma perna na calça a outra pulando gritando ou ou ou me espera.

O cara parou e não tinha lugar no caminhão cheio de gente e carga, ele mandou eu subir no teto, onde tinha um outro cara dependurado. Eu olhei o cara, ele não tinha um braço, tentou falar comigo mas era criolo, entendi nada. O caminhão foi, eu fui junto. Aí começou a andar, eu senti um negócio na coxa pensei não é nada. Aí mordeu a virilha pensei uai. Começou a subir as mordida, e eu com a mão presa, o caminhão sacudindo. Num tinha jeito de olhar o que era, comecei a me socar pra ver se matava fosse o que fosse. E o bichinho ficou brabo me mordeu mais, e eu socava, e o bicho mordia, o caminhão balançava. Quando o motorista deu uma freada uns muitos milhões de quilômetros na frente, eu saí correndo no mato fui olhar.

Era um percevejo, tava na rede, eu meti na cueca. O bicho tinha me dado mais de cinquenta mordida. E não sei se vc já tomou mordida de percevejo, mas inflama, né? Não fica bonito, não. Eu olhei o meu negócio, tinha uns dois palmo, aquela cara boa, o bicho arroxeado. Pensei pronto, vai cair. E não dava pra coçar que inchava mais, uma calor do caralho. Meu alívio era dar uma soprada. Deus me livre. Quase fiquei doido de tanta coceira. Olha, meu medo era ficar igual orelha de jiu jitero, sabe. Que inflama e não volta pro lugar. Cair não caiu, mas bonito nunca foi mesmo.

(para fins de registro: num caiu.)

(mas talvez eu tenha ficado doido.)

Uns quinze dias depois cheguei em SP. Aí contei essa história pra minha muié, pra ver se ela tinha dó de mim. O que ela disse, não me esqueço, foi:

— Agora imagina se você fosse o cara sem um braço.

Outra vez eu vim pra São Paulo encontrar uns amigos na praia, me deram um ácido só que desceu violento demais. No meio da doiderinha eu achei que ia morrer, liguei pra Jordana falei bem assim: Jô, a única coisa que eu quero se eu morrer é que meus amigos passem minhas história adiante, cê conta meus causo na mesa boteco ou pode escrever e falar que é seu. Nesse mundo tudo é roubado mesmo.

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Jordana Machado

[Literatura entre colchetes] Instagram: jordanamachado1