[QUEM NÃO TEVE NOME NA ALMA]

Jordana Machado
4 min readJul 28, 2020

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Mamãe achava os dias da semana em espanhol uma das coisas mais poéticas do mundo. Quando queria elogiar alguma coisa ela dizia que a coisa era poética. Eu me chamo Luna. Porque você me deu esse nome, mãe? Assistiu uma série chamada Narcos e achou muito poética a trilha, uma música chamada Tuyo, de um cara chamado Rodrigo Amarante. Todas as gerações possuem suas desavenças sobre quem é o melhor ator [lê-se lindo, gostoso, amo, queria, poético, me beija], e lá em casa a conversa entre mamãe e suas irmãs costumavam girar em torno de uma rivalidade chamada Wagner Moura x Selton Mello. Costumamos responder com nosso nome quando alguém nos pergunta quem somos. Somos muitas coisas, tem dia que não somos nada, mas se a pergunta vem, quem é você, eu sou a Luna.

Quem você pensa que é, Luna? Segunda-feira, sete horas da manhã, todos os dias demoro umas duas horas pra chegar aqui e mais ou menos não se aplica ao caso, porque mais ou menos é um tipo de vício de linguagem que todos temos, os pontos percentuais popularescos aos quais nos agarramos para tentar medir em palavras as inconstâncias e inevitabilidades dessa vida bandida que levamos, nós, os trabalhadores. Então não uso o mais ou menos porque é sempre mais, sempre demora mais, sempre mais ônibus passando sem que seja possível que mais alguém entre, sempre mais cheio, sempre mais gente, sempre mais cheio de gente, eu tô cheia, mas todo dia chego, dou os bons dias, recebo os bons dias, cadê meu bom dia, eu o perco facilmente como perco datas, isqueiros e vontades. Sendo assim, diante destes termos e contextos, é difícil responder isso, quem eu penso que eu sou. Sou Luna, a poética. Com um pequeno ajuste de letras eu me chamaria segunda-feira. Que dia, amigos.

Costumo pensar mais em quem as pessoas são, sobre você então eu penso bastante, teria aqui um montinho significativo de palavras capazes de classificarem e adjetivarem você. Costumo pensar também em quem eu poderia ser, porque é mais fácil pensar no depois, porque pensar no agora é abrir uma caixinha e ver saltar dali de dentro uma coisa chamada caos. Sabe caos? Não sei se dá pra ver o caos lá da sua varanda, mas ele existe, eu sou uma representante, isso te causaria o quê, talvez uma leve surpresa, um resquício de emoção desarmonizando levemente o seu semblante. Enquanto eu tenho o quê? Que talhar a minha cara com esse sorriso controlado, absolutamente bem desenhado para que não pareça que eu não quis sorrir, mas também para que não pareça que eu estou dando confiança demais aos clientes.

Você realmente acha que eu daria algum tipo de confiança pra esses fodidos? Existem tipos de confiança, não sei se estamos falando da mesma. Pois eu procuro não dar nenhuma delas , nem a confiança que se abre igual mala velha, e nem a confiança que fecha, a que sela, posso contar com você, não, não pode. Claro que não deixo eles perceberem, afinal eles precisam comprar esse ermenegildo zegna, e ao que você indica sou a melhor vendedora de ternos desse país, e preciso ganhar meu salário. Mas eles utilizam ambas comigo, tanto a confiança que se abre, e só deus sabe como é difícil resistir a uma partidinha de flerte que é em definitivo uma das minhas especiarias comunicacionais; e também a confiança que fecha, e eles me confidenciam como é balançar os pés no penhasco que é ter os bolsos cheios mas os miolos moles.

Não te basta que eu finja todos os dias que não sou mais inteligente do que todos esses condenados que entram aqui? Não te basta. E agora você quer saber quem eu penso que eu sou. Luna, quem você pensa que é? Eu disse pro cliente que quem fazia as contas ali era eu, e ele que se preocupasse apenas em comprar. Ele encanou que eu estava com o famigerado tomzinho, e eu não estava com tomzinho nenhum, ele que pegou o tomzinho, enfiou o tomzinho na minha goela e decidiu que iria fuder a minha pacata tarde com esse ruído de interpretação. Porque é isso, a partir do momento que você externa algo, não há mais controle, previsão ou conforto. Farão o que quiserem com o que imaginarem, entenderem ou alucinarem diante do que você expôs.

Possivelmente eu estava mesmo com o tomzinho. Tinha muita gente na loja e por isso não tinha dado tempo d’eu tomar meu café da tarde. Café da tarde é uma coisa muito poética. Da poesia não abro mão. E eu fico ligeiramente transtornada quando não posso dropar meu cigarrinho no determinado momento que elegi como sendo o meu momento, brasil. Cliente ficou putaço. Daquele jeito que eles ficam quando começam a jogar a luta de classes na nossa cara. Mal ele sabe que sou especialista nesse jogo. Só não estou do lado de quem ganha, mas conheço as regras, sei como a coisa funciona.

Desenvolveu-se assim uma leve e breve contenda com ele dizendo coisas sobre liderança, autonomia e pronomes como meu, meu, meu. E eu esqueci quem eu era por uns instantes e quando dei por mim as palavras ‘mais valia’ estavam saindo da minha boca. É, eu estava em plena fissura do cigarro. É provável que eu tenha tido um apagão ou coisa do tipo, e quando atinei novamente, o que ouvia agora era a pergunta quem você pensa que você é, porque eu tinha esquecido quem eu sou, só que quando ouvi a pergunta, eu já tinha fumado um cigarro, então fiquei com um vai tomar no meio do seu cú entalado na garganta, o qual estou tentando diluir e digerir com um milho na manteiga que vende aqui na frente, muito poéticos esses milhos, sou viciada.

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[Literatura entre colchetes] Instagram: jordanamachado1

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