[PÁSSAROS FERIDOS]

Jordana Machado
3 min readAug 7, 2021

Nasceu comprida e espichada a danada da menina. Uma meninóna como disse a vó, as tias, as vizinhas, e depois disseram as professoras que passavam o ano todo repetindo que era lá atrás, o lugar dela era bem no fim, em último. No meio da corrida e da bagunça que antecedia a organização necessária para ir de um canto ao outro, tentava se camuflar pelo meio, porque na frente, onde realmente sonhava, ficaria muito destacada e por isso nem tentava; e porque no final ela já estava e para tentar pouco preferia nem tentar, então o meio estava bom, o meio já era alguma coisa, o meio poderia ser um começo. Mas não dava tempo de começar porque a professora tinha os olhos de uma águia, logo via, logo vinha, dizendo isso e aquilo. Pessoal, vamos lá, a fila é por ordem de tamanho. Quem inventou essa merda dessa ordem.

O banheiro parecia ser o único lugar onde se podia ser alguma coisa. O que acontecia todos os dias às 09h não obedecia um plano pensado, se constituía ali na hora, de improviso. A escada era escalada com saltos de dois em dois degraus, os corpos se atraíam e os braços eram enrolados nos pescoços uns dos outros. Sem as carteiras e cadeiras como uma interdição do contato, as pernas agora se amontoavam aos tropeços. Era a hora de comer e descansar, era a hora em que morria a fome por afeto e pertencimento, o livramento das expectativas e regras. Se iniciava um desfile dos tipos mais variados. Cabelos soltos e rabos de cavalo, cabelos amarelos, cabelos azuis, unhas vermelhas e afiadas, unhas roídas. As mais falantes arrancavam risadas, as mais reservadas escreviam coisas em seus tênis. O cigarro unia todo mundo, uma sauna de fumaça e crises.

Aos 17 leu seu primeiro livro longo. Antes disso tinha lido algumas outras coisas, mas em algum momento enfiou na cabeça a ideia de que somente depois de muitas páginas é que estaria capacitada para ler tudo o que houvesse para ler: tratados, receitas, intenções e situações. Parou diante da estante do pai e eram muitos os livros grossos, mas dali não sairia sem fazer sua escolha*. Ficou ali um bom tempo olhando tudo, e isso poderia ter sido feito não ali, mas na biblioteca da escola ou a que fica lá no centro da cidade em frente ao chafariz que metade do ano é meninos de rua e na outra metade é luzes de natal.

Pelo que estava dando para entender, as mil regras e normas de como fazer só se aplicavam dentro dos livros. A professora falava sobre isso na escola, que as palavras tinham sons, e as palavras sozinhas também eram alguma coisa, e que várias palavras juntas eram outra coisa, e essa coisa toda formava o tudo que é um livro. Parecia simples se você realmente entendesse e tentasse, mas não era simples e era pior. Junto você tinha que achar um jeito ou de contar alguma coisa que mais ninguém no mundo soubesse, ou então você tinha de dizer o que muita gente já tinha dito, mas dizer do seu jeito.

Escreveria sobre o ballet porque amava o ballet mesmo depois de terem dito que era muito alta para ele. Passou a vida escutando que crescer era bom, que ser grande era o melhor objetivo. Alguma coisa estava errada. Então em novembro de 2002 ela desistiu de um sonho pela primeira vez e escreveu seu primeiro parágrafo no tênis esquerdo. A menina das unhas roídas gostou. A de cabelo amarelo também.

Todos os ensaios tinham sido concluídos. E foram muitos os dias de dedicação, um corpo inconveniente que dói, atrasos, marcações, infinitas tonalidades de rosa e texturas de tule. O costume com a ausência da felicidade deixava o corpo leve, uma pena raquítica sem destino certo. Chegou a hora de dormir, porque a alegria também cansa.

[*: Pássaros Feridos, Colleen McCullough.]

--

--

Jordana Machado

[Literatura entre colchetes] Instagram: jordanamachado1