[PRA VOCÊ QUE DEIXA PASSAR]
Quando eu te contei o tema do meu projeto de mestrado e você disse “nossa, que preguiça desse assunto”; eu deixei passar.
Quando você foi pegar o celular da sua mãe emprestado de manhã e foi rude com ela; eu deixei passar.
Quando você falou que pensou em me mandar tomar no cu em resposta à algo que eu tenha dito; eu deixei passar.
Quando você me interrompe; eu deixo passar.
Quando você me explica coisas óbvias; eu deixo passar.
Quando você fica mexendo no celular; eu deixo passar.
Quando você fica olhando o relógio; eu deixo passar.
Quando eu falo e você nem olha na minha cara; eu deixo passar.
Quando você goza e eu não; eu deixo passar.
Quando eu sou só uma peça de lego a ser encaixada numa sobra de tempo; eu deixo passar.
Quando você me pede calma em quase todas as vezes que nos falamos, coisa esta que os homens costumam fazer bastante porque é óbvio que mulheres são descontroladas; eu deixo passar.
Quando você falou na minha cara que tem preguiça de mim ou de me conhecer; eu deixei passar.
Quando você esquece coisas que eu te disse um dia antes; eu deixo passar.
Quando eu me vejo tendo mais cuidado com você e suas coisas do que comigo e minhas coisas; eu deixo passar.
Quando você pergunta se o gato comeu minha língua, e eu respondo que estou pensando na vida ou respeitando seu silêncio, quando na verdade estou me sentindo deslocada e sozinha, tentando ser eu mesma diante de uma pessoa que não demonstra interesse ou curiosidade; eu deixo passar.
Quando você chama de “falar um montão; você estava brava né?, “papo bravo”, o que eu chamo de comunicação, dividir emoções e pensamentos, uma das coisas mais importantes e bonitas que existem no universo; eu deixo passar.
Quando você fala e faz o que quer e as minhas expressões e ações são freadas; eu deixo passar.
Quando você se retira de um debate público sobre uma das pautas mais importantes do feminismo, ao invés de dizer que eu achei escroto, eu digo que foi só deselegante; eu deixo passar.
Quando me dou conta de que você nunca me fez um carinho no rosto; eu deixo passar.
Eu dei corda pra tudo isso acontecer porque eu queria ver até aonde ía.
Mas no meio disso tudo eu acabei me enrolando também, mascarando, disfarçando, deixando passar.
Você é uma grande incógnita, seu interesse não é sexual e nem emocional, o que deixa a dúvida: porque você tem “ficado” comigo, então?
Eu sou muito mais do que tenho sido.
Eu mereço muito mais do que tenho tido.
É só depois de muita dor que uma mulher aprende a não aceitar menos que o mínimo.
É só depois de muita luta que uma mulher aprende que ela merece bem mais que o mínimo.
Na real não é uma questão de merecimento, mas de obviedade.
Às vezes chego a pensar que você também seja mais ou mereça mais; mas você parece ansiar pelo fim das coisas, “um dia você vai ver que eu sou de tal jeito e não vai mais querer”, “ah, eu já sei o que você vai acabar dizendo qualquer hora dessas”; e além de parecer querer que as coisas deem errado, você continua vacilando mesmo sabendo que está vacilando, você não parece se importar em deter a ladeira à baixo.
Você tem muitas qualidades, mas essa lista de problemas já está extensa demais pra pouco tempo de convivência.
Você como integrante e defensor da classe trabalhadora, diante de toda responsabilidade que isso exige, precisa urgentemente combater esses problemas, porque a gente sabe que nossas interações pessoais também são políticas, e que esses problemas estão infestados de assimetria entre os gêneros e patriarcado.
Sua reação diante desse escrito será bastante reveladora.
Desejo que você consiga enxergar nele uma possibilidade de reflexão sincera e crescimento humano-sócio-pessoal.
No entanto, vai se fudê. Adeus, otário.