[PASSARINHO, QUE SOM É ESSE?]
O homem jogava o ar para fora, inconsequente, despreocupado, como a quem sobra ar, gasta mais, assopra. O homem se punha alheio aos métodos históricos da respiração humana. Nem aí para o que é certo, ou o que vem primeiro, e depois vem depois, pouco importava se era inspirar ou expirar, ou o contrário, para tornar a ser de novo. E a bem da verdade era que durante todos os anos nunca soube identificar, no instante em que precisava fazê-lo rapidamente, o significado das duas palavras, assim como eventualmente se perdia no direita e esquerda que a condução exigia. Entender instantaneamente o que as coisas queriam dizer. Sonhava alto assim.
Fato é que o homem assobiava. Enquanto entrava no banho, enquanto olhava a água no fogo para passar café. Me lembro que tive uma namorada e eu chegava na casa dela e não tocava o sino, não batia na porta, nem na palma, também não chamava nome. Eu assobiava um assobio que tinha numa música que nós dois gostávamos muito. E vindo me atender ela também assobiava, igualzinho, eu, ela e a música, e botávamos os cachorros todos da rua a se atiçarem.
E me lembrando das coisas é que eu ficava na presença desse homem. Um senhor na minha idade já perdeu coisa demais na vida. Mas o que mantive e não creio que vá perder, é o respeito e reverência diante de alguém que assobia. Um assobio ou assovio, e aqui você pode escolher e deixar em descanso e suspenso as arestas das convenções gramaticais, porque a língua ela é viva, e a daquele homem era como se lhe tivessem embutido uma flauta na goela. Repito e continuo: o assobio é um deboche. A ofensa não é foto, risada ou conta bancária, mas o assobio. Antidepressivos podem deixar sua boca mole, inutilizando-a para o assobio ou para chupar qualquer coisa ou pessoa. Eu deveria ser o responsável técnico e literário por construir as narrativas informacionais das bulas, me diriam. Nenhum vivente assobia sem querer. Há nisso toda uma carga emocional, um equilíbrio químico cerebral, um Lago dos Cisnes entre os neurotransmissores.
É bom lembrar que não faço referência ao assobio que chama um cachorro, o carteiro que nunca lembra que aqui é 28 e não 82, ou a mulher na rua. Estes devem entrar em desuso. Sub-categorias do assobio que nunca chegará a figurar como verdadeiro integrante e representante dos verdadeiros assobios, entre outros, aquele que o vento faz quando faz vento lá fora. Nisso reside a comunhão do homem com a natureza. O sonho mais antigo do homem. E o mais distante, cada dia mais longe, levado pelo vento.
A doutora em Educação, Nita Freire, conta que Paulo Freire jantava e se escondia atrás de alguma porta da casa. Ela estava pra chegar do trabalho a qualquer momento. Ao ouvir o barulho das chaves balançando, ele começava a assobiar, imitando pássaros. E o boa noite deles era ela ficar procurando por ele, e ele passarinhando pra ela.
PS: não assobiem para o garçom, que coisa desagradável. Muito menos o chame de chefe, que falta de consciência de classe e escrúpulos, fazer gracejo com a realidade em pleno salão. Chama de poeta. Ou de esplêndido. Ou peça um ‘sweet-jaca’, como fazia Paulo Freire em alguns restaurantes norteamericanos.