[OS TEMPOS DO TEMPO]

Jordana Machado
3 min readJul 17, 2021

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Os cremes antissinais e anti-idade não possuem comprovação científica. Sim, têm essas duas modalidades de coisas e elas são diferentes. Em algum momento você acaba descobrindo isso, as pessoas comentam, a internet comenta, e você mesma acaba comentando consigo e, despretensiosamente, fica sabendo que está um pouco atrasada, o que é absolutamente normal quando o assunto é você, que menstruou aos 17, beijou aos 19 e transou aos 23. Mas os especialistas continuam recomendando filtro solar. Não posso ouvir falar em filtro solar que lembro de Pedro Bial. Passar filtro solar, e você mora na cidade, lá bem longe da praia, bate aquela inconveniência, seu cérebro acha que você vai para praia, mas você vai pegar o próximo Terminal Bandeira via Anhangabaú, lotado.

Mas não eu. Não hoje. Todo dia, mas hoje não. As crianças estão ali em volta do baldinho. Tem tartaruga, estrela, peneirinha. Corre lá na água rapidinho para encher o baldinho, bota o chinelo para lavar. Pode ir tranquilo, a mãe fica aqui olhando. É engraçado ver as crianças conhecendo o que acontece quando você fica de chinelo naquela parte mais molhada da areia. Eita, está me sugando, nossa estou andando de costas, tudo girando, que brisa é essa. Ficou atolado com o chinelinho, olhou para trás, corri lá. Como é bom olhar para trás e ver alguém lá, ou ver alguém vindo. Quando olho para o meu retrovisor não vejo nada, deixei só poeira. Foi melhor assim. Sempre deu muito trabalho explicar meus caminhos, e neles nem sempre dá para ir confortável no carrinho, às vezes é se rastejando, correndo, tem as paradas também, fazer um xixi, comprar um pão de queijo que custa uma fortuna, e chorar o choro que se chora quando se está perdida, perdi o caminho, perdi o ônibus, perdi a chave, e lembro de Adriana Calcanhoto que perdeu as chaves de casa, perdeu o freio.

Lavamos o chinelinho, enchemos o baldinho de água, voltando para a parte mais segura da areia com ele se dependurando na minha carcunda. E eu tantas vezes tartaruguinha, só eu e meu casco, só eu me carregando na minha carcunda. Quantas vezes disse nunca, nem pensar, não, não é por aí o caminho. Só que aí me deu uma brisa, não sabia se tudo estava andando para trás, e tudo deu um giro, e eu, aos 45 anos: mãe. Sem o pai, o pai não está, isso aí não é para mim, não. Isso aí não é para ninguém, as pessoas só fingem que é. Isso aí tem que passar creme para esconder as verdades. Isso aí no começo é varandinha de praia, depois é ônibus lotado. Isso aí é você menstruando, beijando, transando, até o dia que a menstruação não vem. Tem que ficar carregando isso aí na carcunda, se rastejando, correndo. Também não pode perder nada, também não dá tempo de fazer xixi, também não tem dinheiro para o pão de queijo. Acabou a água do baldinho, vamos lá encher de novo. A sunguinha na bunda cheia de areia, a boca roxa, melecada de sorvete de uva. Mãe, vô lá, tá? Vai, vai tranquilo que a mãe tá olhando.

[Crônica publicada na Revista Cultural Traços|Literatura, Fotografia, Arte Digital, Informação e Cultura. Abril/Maio 2021, anoI, n.I]

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