[OS CHEIROS MORANDO NOS PULMÕES]

Jordana Machado
3 min readFeb 2, 2020

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Usava um ponto de luz no pescoço, que significava um pingente tão pequeno que parece uma purpurina. Pintava as unhas com duas camadas de Renda. Tinha cheiro de Carolina Herrera. Cheirou muita cocaína, inalou muito lança-perfume. Deu a luz. Por mais de 30 anos também vendeu luz.

Como era mesmo o nome daquele cara que tinha uma privada do lado de fora de uma casa em Ubatuba ou Maresias, ou algum lugar desses onde a cerveja é cara, ou onde não se bebe cerveja porque dá barriga e é muito coisa de emergente, ou onde as meninas usam pulseirinha no tornozelo, como disse Black Alien. Ele mesmo, Clodovil. Cagava à luz do luar. Do lado de dentro se masturbava à luz do abajur que ela tinha escolhido para compôr sua iluminação do ano. Dava gorjetas absolutas. Talvez fosse solitário e dormisse com sua coleção de 675 echarpes. Ele confiava no bom gosto dela, na maneira como fazia sentido suas cutículas perfeitas que a chefe ordenava serem perfeitas pois as luzes da loja à tudo denunciavam.

Tapar os poros com o pó compacto também era prescrito.Confundiu as partículas das substâncias e ficou com o rosto branco e o lado de dentro do nariz ficou rosa. Na adolescência, o filho se trancava no quarto, subia numa cadeira, e ficava desenhando no teto do quarto com a fumaça que saía de uma vela, enquanto ela, na sala com as amigas, segurava um copo de uísque e não bebia, só cheirava o líquido, e jurava e jurava que era o bastante. Não era. Então defumava o apartamento com o cheiro do filé de merluza que se esturricava no óleo já utilizado 14 vezes.

No dia em que parou de fumar, perambulava às 2 da manhã com 2 crianças no carro, em busca de um lugar aberto, em busca de uma porta aberta, uma passagem, uma aceitação, uma recepção, um olá, boas vindas. Deixou as duas netas e desceu, é rapidinho, é crime, ninguém vai ver. Nem chegou a fumar o último, jogou o maço pela janela. Deparar-se com tudo o que se pode ser: isso é o tipo de coisa que faz alguém construir uma narrativa de superação pra justificar uma cagada. É o superego esticando o lençol da sua cama pra você dormir no sossego.

Um filho assassinado, 2 abortos, um único filho vivo deu a ela 8 netos. Ela o deixou 2 meses na cadeia. Pensão alimentícia. Nos dias de paz ele lavava os cabelos dela, cortava, pintava de loiro. Suas especialidades eram: amar demais, acertar o ponto da maria mole e deixar seu cheiro em nossa roupa depois do abraço. Também possuía certa experiência em dar o primeiro sutiã da vida e também em ser madrinha de cerimônias religiosas às quais não conseguia vislumbrar algum grau ou elemento de realidade ou racionalidade, mas não questionava porque se você disser que veio aqui hoje e veio voando, ela vai acreditar porque o que é que poderia fazer de diferente além de constatar que discordar dá muito trabalho?

Nunca gostou de Natal. Mas gosta de apertar o bico do seio quando está bêbada, mirar na sua direção e fazer o barulho ‘tsi tsiiiii’ com a boca. Talvez saísse dali de dentro um pouco de leite, de luz, ou uísque. Nunca deixava de ser mãe, de trabalhar, de ser porra louca. Nunca deixava de ser gente. E ríamos. As horas em sua presença eram risadas, sair correndo pro banheiro porque tá quase saindo, sair correndo pra fechar o portão porque os cachorros estão fugindo, sair correndo na areia da praia porque o sol tá indo embora. Sair correndo pra alcançar, pra sentir, pra chegar. Pra lembrar você tomamos leite com achocolatado, depois de meia hora uma dose de uísque, saímos correndo pra água com um prato de peixe frito nas mãos enquanto nos gritavam que não podia. Voltamos com o xixi escorrendo nas pernas, passamos Carolina Herrera no lugar do filtro solar, deitamos no sol e choramos.

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[Literatura entre colchetes] Instagram: jordanamachado1

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