[O AMOR DAVA MEDO DE MORRER]
Foi difícil entender porque não podia dar e receber afeto.
Eu era a única pessoa que dormia na sua casa. Você jogava bola com todo mundo, quebrando as regras sobre o que era ter força ou não. De noite sua mãe deixava você guardar o carro na garagem, mesmo que isso fosse contra a lei. Todo mundo no bairro te conhecia, mas só eu sabia o quanto você correu pra fazer aquele gol. Só eu sabia que você dava uma volta no quarteirão antes de estacionar, passava na saída da escola, depois na frente da minha casa e buzinava três vezes às vinte três e trinta.
Sua posição de dormir era de barriga pra baixo, sem travesseiro. Na sua cama de casal tinha um plástico enorme por baixo do lençol. Nas primeiras vezes eu achava engraçado o barulho que fazia quando a gente se mexia. Imaginava que só eu dormia na sua casa porque ninguém podia saber que você já não tinha mais idade pra mijar na cama. Como ninguém podia saber eu fingia que também não sabia. Então eu acordava com as frestas do sol e o cheiro, e já acordava rindo dos seus olhos meio abertos e meio fechados. Você me fazia dar muita risada, você era a minha alegria.
Você cresceu com as roupas que gostava e com o cabelo que não gostava. Nunca ninguém te disse o que podia e o que não podia. Nas excursões da escola era você quem começava a cantar que tinha muita coragem e nenhum medo da morte. Quando nasceu recebeu um nome. Mas só muito tempo depois foi saber que as pessoas podiam te chamar de vários nomes. Um dia rabiscou numa árvore a primeira letra do nome dela. Ela era a sua alegria. Mas também te fez conhecer o que significava a palavra medo.
Dizem que nossos pais nos ensinam o que ensinaram pra eles, e que a gente dá o que aprendemos. Foi difícil entender porque não podia dar e receber afeto como seus pais te ensinaram. Foi difícil entender porque as regras agora pareciam tão impossíveis de serem quebradas. Talvez você sofresse pra esconder de mim que mijava na cama. Ainda não sabia que teria de esconder coisas muito maiores. Ainda não sabia que nem todas as pessoas fariam qualquer coisa pra você não se magoar ou se envergonhar. Foi difícil entender porque é que tiveram de criar uma lei para que se pudesse andar de mãos dadas na rua. As coisas não são mais como eram na quinta série. Agora o amor dava medo de morrer.
[Relatório divulgado pelo Grupo Gay da Bahia informa que 329 LGBTQIA+ tiveram morte violenta no Brasil, vítimas da homotransfobia, em 2019. Foram 297 homicídios e 32 suicídios. Isso equivale a 1 morte a cada 26 horas.]