[NÃO QUERO IR]

Jordana Machado
4 min readMar 15, 2021

Mais uma vez me arremessam para o desconhecido sem minha permissão. Mesmo com o impacto do ato, me arrasto para o novo não com a convicção de que com algum empenho possa ainda resistir, mas saltitando como uma minhoca arrancada da terra. Não tenho história bonita para contar. Não deixo lições ou possibilidades de que você se inspire em mim. Pelo contrário, um espelho inconveniente é o que vai te parecer. Não faz sentido algum a defesa de que seja uma ótima ideia sair da zona de conforto. Estender esse absurdo a todas as áreas e instâncias deixará a vida de qualquer um de nós muito mais de cabeça para baixo do que normalmente já costuma estar. Quero o conforto de saber que ao acordar minhas chaves estarão exatamente onde eu as coloquei na noite anterior, quero tomar o café na caneca feia, saber que continuo precisando de um novo par de sapatos, ouvir você dizendo que me ama depois de bater a porta do carro com força demais como tem sido nos últimos 4 anos.

O sinal abre e o novo está cada vez mais perto. E não é aquele novo de pouco tempo, algo recente, mas que já data um certo acúmulo de novidades dividido em poucos dias, mas sim aquele início da primeira vez, porque não importa quantas vezes algo parecido já tenha acontecido, toda vez é a primeira vez o bastante para pensar que das outras vezes foi ruim e vai continuar sendo. Tem tudo para ser, o sinal abre mas fecha em seguida, um atraso no primeiro dia é um clássico que nem o mais desgraçado dos homens pode receber piedade. Primeiro vem a lembrança de que se tosse quando se está nervoso, segue um efeito cascata com a vontade de tossir, a tosse em si, a mão direita apalpando o banco do passageiro em busca da garrafa de água. Você sentou em cima da garrafa de água antes de bater a porta do carro com força. Sua bunda ficou amornando minha água junto com esse sol descabido para esse horário tão cedo. Sua bunda tem a temperatura desse sol, não consigo abrir a garrafa só com uma mão e a boca vai ficando mais seca, diferente de ontem quando eu metia minha língua no seu cuzinho, pensamento descabido para esse horário tão cedo, mas estou ficando descontrolado e preciso de uma boa lembrança para me refugiar.

Simular um desmaio seria muito perigoso, morando tão perto o trânsito não me vale de nada muito factível, começo a divagar sobre a época em que uma simples dor de barriga resolvia tudo e então me afundava na cama sentindo o sabor da vitória e do leite com chocolate. Desejei, mas nenhuma catástrofe aconteceu e até vaga boa tem, estaciono o carro e dou uma raspada na guia, certamente minha coordenação motora fina está comprometida, minhas pupilas alternando em dilatação e contração, qualquer pessoa minimamente sensível e centrada poderia reparar que neste momento estou segurando meu coração nas mãos. Me encaro no retrovisor, rumino palavras desconexas, frases cortadas com palavrões, jogo a cabeça no encosto do banco como fazem os perdedores nos filmes quando o plano deu errado. O plano da minha vida deu errado e eu nem tinha um plano. As luzes no painel indicam que horas são, a gasolina que ainda tenho, quantos quilômetros têm o caminho de volta, a música que veio tocando no trajeto e desliguei porque minhas músicas ou me deixariam mais tristes do que já estou ou me deixariam feliz e esse sentimento não combinaria com o momento. Coloquei a música de novo e fiquei me perguntando o que Tom Waits faria no meu lugar. Fiz exatamente o que ele faria, saí para fumar um cigarro.

Fumaça subindo misturada com o ar gelado, é esse o meu tipo de manhã preferida. Quase sorrio, mas encostado no carro tentando não parecer que vou assaltá-lo ou nem parecer que estou me exibindo, o sorriso entra de volta quando reflito sobre porque sou assim, com meu narciso transformando qualquer ato simples em uma cena onde tudo sou eu, por minha causa ou sobre mim. Olho para o chão e chuto algumas pedrinhas, assim como fazem as crianças angustiadas nas portas das escolas. Estou na porta de uma escola, angustiado, chutando pedrinhas, mas não sou mais criança. Reparo no meu sapato e realmente preciso de um novo. Certamente vão reparar neles hoje, em como eles estão velhos demais, em como eles não condizem com meu cargo ou idade, muito menos com a temperatura do outono que eu gosto tanto. O cigarro vai acabando e certamente alguém me viu fumando, já me julgou, vê se isso é lugar de fumar, vê se essa pessoa é pessoa para fumar, vê se isso é hora de fumar sem café da manhã antes, pelo amor de deus quem é que ainda fuma hoje em dia. Esse cigarro é minha sanidade, é ele quem me impede de sapatear a cara de alguém com meus sapatos, pisando nas cabeças com eles nos meus pés ou enfiando eles nas minhas mãos e inaugurando uma espécie de luvas de boxe. Tem história esses sapatos, as gotas de mijo, de detergente e de chuva, a gordura do último pedaço de coxinha pois o fumante tem mãos trêmulas que deixam cair o pedaço mais gostoso de qualquer alimento. Gosto muito de coxinhas, e vou tentando mais uma vez me agarrar na técnica do agora e me lembrar das coisas que gosto, coxinha, Tom Waits, outono, cuzinho. Bateu o sinal da escola, não tem mais como fugir. Quatro adolescentes sentados na calçada em frente, nossos sapatos são iguais, nossos corações diferentes nas mãos.

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Jordana Machado

[Literatura entre colchetes] Instagram: jordanamachado1