[NÃO MEXE NISSO AÍ, NÃO]

Jordana Machado
4 min readJun 6, 2020

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Reencontrar as panelas de barro foi tão bom e bonito. Panela de barro é uma coisa muito poética, é um negócio que realmente funciona, é uma coisa com a qual você não corre o risco de ouvir o garfo raspando nela e te dando aquela sensação de vou desmaiar, tamanha agonia causada quando um garfo faz isso. Quando percebe alguém se aproximando de uma panela com um garfo na mão, finge que está coçando as orelhas e as tampa, e faz um lálálá mental pra tentar abafar o som. Tão importante quanto a panela, é o que tem dentro dela, e tinha canjica. Tatuaria a palavra canjica no antebraço.

O cheiro de canela ainda pelo ar, muitos pedaços de coco entre os dentes, barrigas estufadas, davam mini arrotos leitosos que nem os bebês fazem. Melhor lavar a louça agora porque depois dá preguiça, pensou.

Receber visita é foda porque, socialmente, essa tarefa carrega a premissa do querer agradar. Até porque ninguém sai de casa querendo desagradar alguém de caso pensado. Quem achar que essa última frase faz algum sentido racional, bom, precisamos chegar num consenso aqui, e você precisa aceitar que essas pessoas gente boa que você idealizou na sua cabeça só existem de vez em quando, e é com a outra metade do de vez em quando que é preciso lidar. O verbo agradar mobiliza dimensões diferentes nos jogadores da casa e nos jogadores visitantes. O povo da casa preocupa-se com coisas da ordem de um será que a casa tá fedendo a cigarro, será que tem muito pelo de gato no sofá, será que essa comida vai dar; sendo essa última a mais difícil de controlar, porque todo mundo sabe que ou vai sobrar e ficar a semana toda rolando na geladeira até finalmente desembocar nas vasilhinhas dos cachorros, ou então não vai dar e puta merda entucha pão, pão dá aquela forrada legal. Já para os jogadores visitantes a preocupação se resume a mostrar que é educado, e disso nascem várias anomalias comportamentais, tendo como destaque histórico o conhecido clássico pode-deixar-que-eu-lavo-a-louça. Visitas que lavam a louça: parecem legal, mas não são.

A palavra educação e seus derivados ganhou inúmeros significados para os humanos. Pode ser falar outros idiomas ou ter conhecido outros países; pode ser ter feito ensino superior; pode ser palitar os dentes com aquela mãozinha frente tapando a visão do inferno; pode ser sentar com as pernas fechadas isso bem mocinha (sic); pode ser aquela oratória, articulada, que fala umas besteiras pomposas que ninguém perguntou, e que costumam ocasionar reações que passeiam do caramba hein, até o ual nossa não imaginava; ou então pode ser a pessoa que lava a louça na casa dos outros.

Geralmente essas pessoas se ocupam de fazer ali o basicão. Entendemos assim que não entram nessa categoria o fogão e as panelas, porque aí já é demais, gentileza demais. Evidente que isso não se aplica quando a figura é um homem. Se um homem começar a lavar a louça diante de uma plateia, deixa, deixa, não interrompe. Ele pode estar só querendo um biscoito, mas é sempre bom esfregar uma lição empírica de obviedade na cara de outros homens, e de quebra mostrar pra todo mundo como olha só como meu ômi é diferenciado. Pode assumir que pensa isso, assume logo. Ainda estamos na fase de achar boa uma oportunidade de demonstrar algo que deveria ser normal, e ainda nos gabar por isso. Fato é que nesse dia em questão, foi a prima distante que decidiu se atracar com as panelas da vó Dêga.

Enquanto fumava um cigarro no batente da porta, com uma das mãos apoiadas e um dos joelhos dobrados, batendo o chinelo na sola do pé, assim como o faz todas as pessoas sensatas e com alguma experiência razoável de vida; eu analisava a situação. Ia dar merda. Um cigarro demora em média 7min para ser fumado. Não deu tempo. A vó Dêga me lançou aquele olhar de faça alguma coisa ou eu farei, e saiu da cozinha. Gostei daquilo. É gratificante ver que você conhece tão bem uma pessoa, sabendo exatamente quais os tipos de coisas que são capazes de fazê-la perder o rumo da própria existência, e de repente você é a única pessoa no mundo capaz de implementar com sucesso um eficaz muita calma nessa hora, vamos lá. Rapidamente comecei a traçar um plano na minha cabeça que pudesse reduzir os danos. Eu poderia ir direto ao ponto e isso costuma ter um preço alto, mas a prima não me parecia apreciar resumos, visto que ela passou os últimos 20min falando ininterruptamente. Eu contei. Deu pra fumar 3 cigarros. Ela encasquetou que a vó iria gostar de encontrar a cozinha brilhando, o fogão brilhando, tudo brilhando, e para isso era preciso guardar as sobras em potes na geladeira para que ela lavasse as panelas. A última vez que veio aqui ela era criança, então claro que ela não conhecia as tramas e traumas da casa, claro que ela não sabia o que fazia os olhos da vó brilharem num vermelho fogo fumegante de nossa senhora alguém me segura senão eu avanço.

Por essas e outras que desagradar é mais fácil. Tudo converge para o desagrado. Suposições e distância podem ser uma combinação explosiva que te faz pensar que sabe das coisas porque afinal não te avisaram de ser isso ou aquilo outro; mas você não sabe. Agradar é mais difícil, são muitas as réguas pra medir isso. Eu por exemplo, agradar significa eu bater na porta da sua casa com uma garrafa de coca-cola, pães crocantes e 300g de mortadela defumada, perguntando se tem café, te pedindo pra colocar uma música, te dando um abraço, e me dirigindo até a porta e dizendo vou ficar aqui na beirinha pra fumaça não entrar tá bom, e dale conversa até de madrugada.

Olhei pra prima e disse. Sei que você está fazendo o seu melhor, mas a vó não vai gostar disso. Posso te ajudar a tentar de outra forma, o que acha? A vó não gosta que o fogão fique sem nada em cima, sem sujeira, sem panela. Isso faz ela lembrar de quando não tinha nada pra comer.

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