[NOTAS SOBRE CINCO CRIANÇAS]
Leva um brinquedo que não gosta, geralmente um carrinho roxo. Divide-se entre jogá-lo no chão ou olhar emburrado para ele. Parece gostar de jogar coisas no chão, brinquedos, cadeiras e às vezes a si mesmo. Talvez esteja realizando algum experimento sonoro e secreto ou talvez assista conteúdos em que pessoas se jogam de prédios ou se atiram por cima de carros. Quando sente calor suas costeletas ficam molhadas. Não consigo entender o que você fala e dou como resposta qualquer coisa que me venha primeiro à mente. Parecemos nos entender em nosso desentendimento. Você sorri e corre. Não consegue abaixar as próprias calças e quase nunca usa roupas de baixo. Suas pernas ainda não tocam o chão quando senta no vaso sanitário. Estende as mãos para que eu te salve do furacão aquático que se forma quando eu aperto a descarga.
Te dei uma girafa de pelúcia, mas você gosta mesmo é do unicórnio. Levou livros e dvd’s para nos mostrar e ficou muito brava quando não os olhamos no exato instante em que você queria que fizéssemos isso. Prometeu para sua vó que iria jogar a chupeta fora. Não cumpriu a promessa. Organizava quem era amiga de quem, mas sua amiga não podia ser amiga de mais ninguém. Comeu tanta besteira na festa de Halloween que vomitou a noite toda. Seu pai não acreditava quando dizíamos que você tinha feito a gente passar nervoso. Todas as tardes você me fez massagem de carrinho, que consistia em fingir que meus braços e pernas eram uma autoestrada. Você é uma ótima contadora de histórias, gravei diversas delas no meu celular. Minha preferida é sobre a cobra que ficou presa em cima de uma árvore. Me deu um panetone de Natal e quis comê-lo antes de mim. Você mudou de escola e eu perdi minha ajudante que separava os brinquedos entre grandes e pequenos.
Sua mãe diz que você é bravo porque seu pai é policial e que foi com ele que você aprendeu a resmungar. Você faz um barulho com a boca quando é contrariado. Acho que você não aprova a rotina da escola porque acaba fazendo o barulho com a boca muitas vezes por dia. Você tem um problema de saúde nos pés e eles são gordinhos, se parecem com broas de milho. Por isso o velcro do tênis da escola vive abrindo e você fica tropeçando. Vocês tem um amigo inseparável e vocês se abraçam constantemente. Bagunçam as filas e caem dos bancos do refeitório, tudo isso abraçados. Você leva as broncas no lugar dele. Seu super-herói preferido é o Homem de Ferro e seu lanche preferido é sucrilhos. Suas roupas não te cabem mais. Gosta de música alta, chuva e bolhas de sabão. Eventualmente come terra. Fica feliz quando os gatos andam no nosso muro. Ao contrário dos outros, chora na hora de ir embora.
Você é nova na escola, mas nem parece. Talvez você se esqueça disso, e nós também. Creio que vá sentir falta dessa simplicidade das coisas na vida adulta. Você está sempre sorrindo e conversando com os objetos. Tento ouvir o que você balbucia, para saber que narrativas está criando. Um rabo de cavalo gigante e de cabelo preto e grosso te açoita as costas. Sua palavra preferida é ‘nossa’. Você a usa para nos dizer o quanto está maravilhada e curiosa com tudo o que acontece o tempo todo. Te ver assim me faz querer chorar. Penso em te avisar que isso vai acabar, mas não ousaria. Você acaba me dando um pouco todo dia. Na hora da história, quando a professora se demora entre uma frase e outra, você acaba contando a história no lugar dela. Você é alérgica ao corante das massas de modelar. Te arrumamos argila para substituir e isso te deixou radiante. Nesse dia você falou muitas vezes a palavra ‘nossa’. E a gente também.
Você mora na minha rua. Aqui da minha sala eu escuto sua voz quando você passa na minha calçada. Gosta de conversar e ajudar os colegas. Usa presilhas nos cabelos e faz questão que elas estejam sempre no lugar certo, inclusive na hora de dormir. Quando nos demos conta, quatro crianças tinham desaparecido. Depois de sessenta segundos de desespero, vimos que vocês estavam trancadas na sala e organizavam uma troca coletiva de roupas. Adorava quando estávamos com algo na cabeça nos dias frios. Sua vó é bem ranzinza. Você é o clone do seu pai. Não conseguia pegar no sono enquanto o lençol não estivesse totalmente esticado. Acordava algumas vezes para deixar o edredon emparelhado com as extremidades do colchãozinho. No dia da beleza passou esmalte nas pálpebras. Gosta de livros, suco, pipoca e abraços.