[MUITO ANTES DE ONTEM]
Uma asmática chora na escadaria do terminal rodoviário de Campinas. Revira os bolsos da bolsa e tira de lá 5 reais e estende a nota para a moça no bolcão da Casa do Pão de Queijo. Lembra de quando o boné do uniforme não entrava na cabeça, do desentendimento com dona Tatiana, cospe no uniforme dentro de um banheiro do Shopping Eldorado. Lembra que um saco de 500g de Pilão ou Pelé custa em média 10 reais. É fácil calcular a magnitude da irracionalidade, mesmo depois daquela tarde humilhante aonde a professora Vera fez 22 crianças ficarem com vontade de chorar diante de uma expressão numérica. Ela foi sorteando os números da chamada, o meu era 18, e um a um íamos trôpegos em direção ao abismo da lousa. Uma espécie de bingo da morte em 60 minutos.
A única verdade na internet é a dica que ensina a colocar sal e água quente em uma panela queimada de pipoca, caso você pretenda trazê-la de volta à vida, o resto é tudo mentira. Os filtros, os padrões, os dias bons, os bom dia, a previsão do tempo, os hiperlinks, as resoluções, as montagens, a grávida de Taubaté, o de volta pra minha terra, a contagem de manifestantes em Copacabana.
A única mentira que as pessoas que gostam de você te contam é a letalidade do leite com manga, o resto é tudo verdade. O perigo na esquina, o consumo de energia dos aparelhos em stand-by, os benefícios de dormir sem calcinha, as consequências de estar num estádio lotado e gritar gol antes da hora do gol.
Num pregador de roupas balançam 2 fotos, irmãos em uniformes escolares, o conhecimento foi um tiro no coração, e depois um na cabeça. Saber doeu.
Mangas e carambolas para matar a fome.
Aos domingos, pra lembrar de casa, macarronada solitária com as economias da semana.
Mais-valia, superestrutura, coisificação, o preço da mussarela, dia de visita, protetor solar, AirPods, Nike Air Max, armazenagem em nuvem, poeira cósmica, gás lacrimogênio.
Mataram o IPod Classic, o horário de verão.
Mataram uma criança chilena, e Marielle Franco.
Nasce um projeto literário sem nome, um pé de feijão, um sobrinho, um calo no dedinho do pé direito. Um podólogo é o dentista dos pés, constata.
Quem escolhe ganhar a vida assim?
Quem escolhe perder a vida assim?
Quem escolhe quem vai viver ou morrer?
Dez latas de cerveja e chove granizo em Irajá.
É madrugada em Londres.
Sonha que Letícia Spiller e Jane Fonda nadam em uma piscina de água micelar.
Uma fotógrafa registra um batismo.
Gotas de lágrimas caem dentro de um copo de café.
O Palmeiras será campeão do ano.
Uma criança olha para a professora e fala, professora, eu te amo.
Across the universe.