[MAIOR EXEMPLO, MAIOR EXCEÇÃO]
Através de meus olhos.
Aqui pra cima de casa tem um quartel. Mais ali pro lado tem um bairro que um dia só teve indústrias. Logo pra baixo tem a estrada que corta a cidade. Sempre morei por aqui e conheço tudo como a palma da minha mão. É como se eu tivesse um mapa cravado na minha cabeça. Os lugares se dividem entre os que fui e os que ainda não fui mas sei aonde fica. De noite antes de dormir fico ouvindo o barulho da rodovia. Imagino se os carros e caminhões estão indo ou voltando, ou se na verdade gostariam era de ficar. Às vezes tenho muita vontade de ir embora, mas ainda não posso.
Minha condição de classe me fez entender bem cedo o significado da palavra falta. É comum saber as consequências de uma falta numa aula, num jogo de futebol ou da falta de comida, mas não é tão simples entender a falta que podemos fazer ou a falta que nos fazem. Minha mãe está há alguns bairros de distância e eu entendo a partida dela. Meu melhor amigo também foi, assim como tudo que eu construí com ele. Acho que ele acreditava tanto em mim que parece que nossas criações se apagaram justamente para que eu pudesse recomeçar sem ele. Minha irmã ficou e eu fico por ela, essa menina que mora no corpo de uma mulher. No mundo dela ninguém entra e ninguém sai, e vez ou outra chego a desejar que meu mundo também fosse assim, pra nunca mais ter que chegar em desertos, pra nunca mais ter que varrer a poeira que costumam deixar. Meu pai está, e ele é feito de partes das frutas que vende, sua pele, seu coração e sua voz contém casca de abacaxi e semente de abacate. Meu avô foi esses dias, e eu sempre pensei que não conseguiria sem ele. E eu estou vivo, mesmo que aos pedaços, e isso já faz 25 anos.
Quem me encontra em algum lugar não sabe direito o que pensar sobre mim. Num primeiro momento eu passo tantas impressões conflitantes entre si que imagino as pessoas abrindo mapas sobre a mesa, munindo-se de lupas e bússolas, pra tentar me encontrar. Eu gasto um tempo tremendo pensando em pessoas e gostaria que isso fosse proporcionalmente recíproco. Meu corpo pode dar a entender que sou rústico ou com pouco jeito. Mas quem me olhou nos olhos reconheceu as grandezas e afetos que trago. E quem me abraçou sentiu que na circunferência dos meus braços cabe o mundo. Minhas mãos transpiram porque ciclicamente expelem a sede que sinto de enfia-las nesse mundo, amassar tudo e jogar fora, começar tudo de novo, tirar meus óculos, limpar as lentes, olhar atentamente pra ver como ficou e pensar agora sim podemos escancarar esse nosso peito.
Sou muito bom em guardar coisas. Nomes de autores, filmes, jogos, textos, poemas e músicas. Procuro sempre deixar minhas coisas organizadas por tamanho, cor ou ordem alfabética. Fico pensando em como seria minha cabeça e meu coração se houvesse aqui dentro algumas caixas, aonde eu guardaria cada coisa, que tamanho e formato cada seção teria, o que seria difícil de descartar, e o que daria orgulho de armazenar. Como todo bom estoque as coisas poderiam se resumir a algumas questões. Não cabe mais nada nessa caixa, como ela acabou ficando com todo esse tamanho? Será que eu guardo isso nessa ou naquela caixa? Devo mesmo guardar isso? O que essa caixa vazia está fazendo aqui? Mesmo assim acredito que muitas regras definitivamente não servem para nada e só atrapalham o andamento das coisas e do mundo.
Durmo cedo, acordo cedo, visto minha camiseta preferida e dou comida ao meu gato. Os olhos estão inchados porque antes de deitar me reencontrei comigo mesmo na infância aonde eu falava sobre mim na terceira pessoa e isso me fez chorar. Eu desenhava e narrava uma aventura aonde eu era forte, encontrava animais fantásticos e uma irmã gêmea, tentando encontrar os limites da vingança e a hora certa de encerrar um conflito. Me pergunto o que minha terceira pessoa falaria de mim para mim hoje. Acredito que me diria para voltar a inserir a palavra super antes do meu nome. Mas algumas guerras que tiverem início quando eu era só um menino ainda não tiveram fim.
Assim como todo mundo, carrego as angústias do tempo presente. Também fico pensando sobre tempos em que eu nem estava vivo e as coisas que aconteciam por lá. Me divido entre o receio e a esperança de como tudo estará quando eu não estiver. Pego ônibus, tomo cafés, uso fones de ouvido, digito palavras, anseio trocas, me emociono. Sou um observador, um combatente, um sonhador.