[HORA QUEBRADA]
Aborreço-me com as horas quebradas. Não poder ir ou voltar quando a hora começa ou quando no máximo está na meia da sua inexorável volta completa. Se me saio na metade das seis horas chego primeiro e não há ainda ninguém pelo caminho que percorro, muito menos talvez aonde esteja indo. Se assim vou, não dou os bons dias para a vizinha do lado, não encontro o carro do pão que chega para abastecer o mercado. Também não vejo a senhora que vende o gelado doce dentro do saco, e também não vejo o garoto loiro que puxa a bicicleta pra si até que ela fique suspensa no ar e equilibrada na roda traseira. Por isso a resolução é ir aos quarenta e cinco, ou em outros modos de dizer, faltando quinze. O gelado doce custaria uma moeda, e todo dia penso se a senhora pensa porque eu sempre sorrio pra ela mas nunca compro o que ela vende. Me esperancei de que ela mudasse a mercadoria com a chegada do inverno, mas eu sigo com meus pulmões frágeis, cheia de moedas no fundo da bolsa. Lá vem o garoto loiro e a auto confiança dele me faz desejar que tropece e voe dezenas de penas de pavão colorindo a rua que cheira a esgoto. Passo quatro vezes por dia em cada ponto do trajeto. Sempre atravesso as ruas no mesmo local, e quando me vem de fazer diferente eu faço. Parece um presságio e não sou de fazer graça com assunto de outro mundo. Toco as pernas pro lado que a cabeça manda e parece que tudo muda. Chamam de perspectiva. Disse que quando me encontra na rua é porque está atrasada. Fiquei sem saber se significo hora quebrada ou cravada. Os sinos das igrejas batem em cheio nas horas, exatos e todo. Algum lugar perto aperta uma sirene faltando dez minutos. O prazer de achar que já é tarde mas ainda há tempo. A angústia de achar que chegou sua hora mas ainda não, ainda não.