[DORIVAL]
Disse que eu sou apaixonante, mas um apaixonante pior do que o apaixonante de viés romântico, sendo a espécie de humano apaixonante, que simplesmente abarca todos os vieses possíveis. Como é possível que alguém se apaixone por mim sem saber com o que exatamente eu me pareço ou quem me torno no exato instante em que quero um suco de goiaba mas não tem goiaba? Pior é que só tem de manga, ainda por cima é aquele de caixinha da DelValle, tudo bem que poderia terrivelmente ser o da latinha, definitivamente nada parecido com as mangas das mangueiras margeando o Rio Pinheiros da minha imaginação. O rio vivo, dias ensolarados mas não muito, crianças, barquinhos, sombras, uma possível luta com um jovem rico e seu maldito jetski, e umas outras tantas infinidades de coisas que a minha imaginação é capaz de imaginar enquanto repouso minha mão esquerda na bunda dela e olhamos para o Rio Pinheiros em sua versão morta.
Me pergunto como ela pode ter se apaixonado por mim depois da escova de dente roxa quando o roxo é uma cor que ela não gosta, mas como é que eu iria saber. Também requentei o yakissoba, um erro grotesco na leitura dela, e deve ser por isso que ela não repetiu e eu achando que era vergonha. Só descobri que ela não tinha vergonha no café da manhã, me olhando com aqueles olhos de dia seguinte, imaginei um carinho mais tradicional e ganhei uma mordida na voltinha da bunda, aquela parte específica em que ela se une com a coxa.
Eu deveria ter imaginado que essa história não terminaria bem, porque não tem como terminar bem uma história onde uma das personagens usa um nome falso, não tem a cartilagem do polegar esquerdo e ameaça hackear pessoas. Mas foi tão encantador ela fazendo palavras-cruzadas, ela fazendo gestos obscenos no supermercado, ela me mandando músicas que expressam um dos grandes problemas da minha vida, que é ir embora.
Chego e vou embora dos lugares, é assim que ganho a vida, e curiosamente algumas pessoas continuam vivas por conta disso. No começo era absurdamente interessante, me sentia de novo como aquele menininho de gorro da Vila Ipojuca, um sonhador. Fui desenvolvendo habilidades excepcionais para o meu currículo relacionadas com questões práticas da atividade de empacar mochilas, coisa que muito me emociona. Em média preciso de 1h para preparar 20kg ou 80 litros, e esse tipo de equipamento é capaz de comportar minhas necessidades por um período de até 9 meses, caso bem organizado. Quando são períodos superiores a 12 meses, levo 2 malas de 20kg ou 160 litros, porque o volume é mais importante do que a massa. Também me dediquei bastante à preguiça, música, filosofia de bar, esportes aquáticos, línguas estrangeiras em praias tropicais, e também a ser retratado em fotografias trajando coletes salva-vidas e posicionado com as mãos arqueadas e sedutoras. Nesse vai e vem pelo mundo, os pedidos basicamente se resumem a pelo amor de deus fica e pelo amor de deus volta. Eventualmente um graças a deus que você foi embora.
Mas como ela se apaixonou por mim apenas dispondo de informações como minha cor preferida ser o verde, meu melhor amigo se chamar Fernando, e minha escola no ensino médio ter tido policiais militares em suas dependências? Eu acordo às 6 da manhã e uso como cinzeiro uma garrafa de refrigerante com um pouco de água dentro, por isso não faz o menor sentido que ela tenha se apaixonado por mim.
Talvez eu tenha sido um pouco como Rose em Titanic, fiquei confortável em cima da porta enquanto o pobre Jack se afogava nas águas gélidas do oceano. Talvez a paixão dela por mim tenha se parecido com a minha apendicite: no começo não havia a menor possibilidade de acontecer, depois aconteceu mas não parecia nada além de uma intoxicação, do nada arrebentou, doeu bastante e todo mundo ficou desacreditando que aquilo realmente estava acontecendo. Quando surgem questões com o seu apêndice, você se pergunta como tanta coisa para acontecer e por que logo isso, exatamente agora e justamente comigo. Sendo essas as 3 perguntas mais desagradáveis que direcionamos a tudo na vida adulta, diferentemente de quando éramos crianças e atinávamos ser uma ótima ideia colocar as coisas amadas dentro da mochila e partiu escola, incluindo nosso cachorro. Ela é um pouco como uma folhinha, porque folhinha é uma coisa que pode dançar, pode nunca mais ser vista, pode ser bem devagar, pode ser bem rápida, tudo depende do que soprar, e ambições até que temos, mas não a de entender os caminhos dos ventos. Essa folhinha foi parar dentro do meu suco de goiaba: foi de repente, pareceu estranho, mas é uma coisa bonita.
Após sobreviver aos ataques virulentos e apocalípticos, eu só queria sonhar com um dia qualquer onde eu poderia ir caminhando num sábado de manhã para comprar frango assado em algum bar do bairro, com aquela ressaca da festa de sexta com 159 pessoas em um lugar que cabiam 7. Mas quando me dei conta, estávamos submersos em pormenores e adjetivos de lindas expressões de querença, bem-dizer, saliências e foguetórios carnais e emocionais que aprendemos em nossas estadias nos sindicatos dos caminhoneiros e mestres de obras.
Foi tudo muito rápido, não deu tempo de muita coisa. Não deu tempo de ver as unhas pintadas de outras cores, ou outros cabelos, ou os dias de cólicas, ou os gritos de gol. Não deu tempo do vestido sem calcinha. Não deu tempo de ver ela chorar, e ela chorou. Não deu tempo dela me contar que se não usamos camisinha na parte da frente, na parte de trás é fundamental que se use. Não deu tempo de entender que a culpa não foi disso ou daquilo, mas que esse é mesmo o jeito intenso dela, em todo tempo e em qualquer parte, presa no labirinto das fantasias e delírios catastróficos, e ela te dá um buquê com uns matinhos de cheiro bom, hoje te manda um poema, amanhã diz que nunca mais vai falar com você, sendo que dia desses, antes do cochilo, pediu ao universo para sonhar comigo, e hoje pede para que eu apareça dizendo que não quero ir embora sem te ver de novo.
Talvez um dia eu entenda e “não faça perguntas porque sei que não se deve perguntar nada a um homem apaixonado”. Talvez algum dia eu pense nela antes de dormir e sinta uma saudade que vai arrancar meu coração pra fora, como ela quis fazer. Talvez eu volte no inverno e veja o cachecol azul marinho que é o preferido dela. Talvez ela esteja com “a esperança pedindo-me que espere e sempre que o telefone toca e é engano és tu, quando o galho comprido da árvore do vizinho bate na janela és tu, quando as crianças cantam lá fora é para te anunciar”. Há 7 dias, neste exato horário, ela vinha chegando e eu descobrindo que o café dela também é sem açúcar. Com 7 dias depois, ligamos nossos celulares no mesmo horário e nos lembramos de quando não havia data mais bonita do que a segunda-feira.
O fim dessa história é “sem história, sem família, sem passado, nesta paz que não existe, neste amor que nunca foi, mas que é para sempre”. O fim dessa história sou eu perdendo para as palavras dela e ela perdendo notícias de mim.
Se a vida real fosse um filme, eu no aeroporto, ela chega correndo para me entregar um pedaço de bolo de banana e um poema da Ana Martins Marques.
[“Escrevi este poema no último dia
depois disso não nos vimos mais
a princípio trocamos telefonemas
em que você sempre parecia estar prestes a perder o trem
enquanto eu sempre parecia ter acabado de perdê-lo
escrevi este poema depois do primeiro telefonema
você falava sobre vistos e repartições
e sobre como para conseguir um documento sempre é necessário um outro
que no entanto só se pode obter de posse daquele
eu falava sobre as noites perdidas na companhia de alguém
que nunca era você
depois aos poucos você deixou de ligar
escrevi este poema no segundo domingo
em que você de novo não telefonou
ao redor do poema como em volta de um acidente
juntou-se muita gente
para ver o que era.”]
[MARQUES, Ana Martins. Acidente. IN. O livro das semelhanças, 2015.]