[CONTANDO OS DIAS]

Jordana Machado
3 min readJul 12, 2020

--

Minhas férias. Todo ano a professora pede pra que a gente escreva sobre como é que foram os dias de férias. Acho que o pessoal mente, e isso não entra na minha cabeça. Deu muito trabalho aprender a escrever, linhas e linhas de caligrafia, apaga, rasga, faz de novo e de novo, pra no fim usar isso pra contar mentiras. Falar mentira pode até fazer sentido, porque sai rápido, agora escrever não, escrever tem que pensar, tem que sentir, e não quero sentir mentiras. Esse ano vou escrever que assisti A Lista de Schindler. Demorou bastante pra conseguir pegar na locadora. Talvez todo mundo também deve ter achado legal que as fitas desse filme eram duas, todo filme era uma fita só, mas esse eram duas. Gosto da minha mãe porque ela deixa eu assistir filmes que não são pra minha idade. Ela também deixa eu usar qualquer roupa que eu quiser, então uso roupas dela e do meu pai.

Aí chega o dia de entregar o escrito sobre as férias, e a professora, ela fica ali sabendo de tudo sobre nós, e a gente sem saber nada das férias dela, só imaginando o que ela fazia, coisas de adulto certamente, coisas que a gente vê uma ou outra coisa acontecendo, mas não tem muita certeza do porquê, igual assistir A Lista de Schindler, não dá pra entender muito bem, mas deve ter algum motivo.

Uma vez estava com minha mãe no mercado e de repente eu vi a professora Gilda lá, e me deu um frio na barriga, uma vergonha, e sem tirar os olhos dela tentei me camuflar no meio dos alfaces, mas me lembrei que ela era adulta e em breve passaria longo tempo escolhendo cebolas, as cebolas estavam perto dos alfaces, fui andando muito rápido pro corredor dos chocolates, fiquei lá apertando as embalagens macias dos doces de mocotó.

Ia no mercado fazer compras, era isso que a professora Gilda fazia nas férias dela. Ela estava de férias de nós, nós éramos o trabalho dela, nós dávamos trabalho, e esse trabalho dava dinheiro pra ela ir no mercado, e que azar encontrar o trabalho dela dentro do mercado e no meio das férias. Fiz certo em me esconder, eu faço isso muito bem.

Professora Gilda fazendo coisas de adulto nas férias, estudando pra ficar ainda mais inteligente; escolhendo as melhores cebolas; ir andando pra casa pensando em como são as coisas do mundo; reparando num erro de ortografia numa placa de por favor comprem meu carro porque eu estou sem dinheiro; sorrindo com o erro, um erro é um erro, mas um erro conta a história de quem errou e isso é o mais valioso; sentindo vontade de beijar na boca; aguando as plantas; vendo a previsão do tempo mesmo sem precisar e passando creme hidratante nos pernão, é muita perna ali, se o creme acabar ela volta no mercado, mas eu já não vou mais estar lá, terminei de apertar os doces de mocotó e voltei pras minhas férias, aluno fazendo coisas de criança nas férias; acordando com sono; comendo e a fome não acaba; brigando por isso; abaixando a cabeça por aquilo; pensando no futuro, criança pensa no depois das coisas também, será que eu vou beijar na boca um dia, será que vou fazer algum amigo, mas acho que não tem como fazer um amigo, ele já deve estar pronto, deve estar por aí, esperando por mim, e eu esperando por ele. Que demora. O sono e a fome não acabam, brigas e pensamentos também não, adultos por toda parte, e hoje é meu aniversário. Minha mãe comprou um bolo enquanto eu me escondia no mercado porque vai saber se a professora Gilda aparecesse ali de novo. Faz um pedido, faz um pedido.

Só um pedido é pouco. Melhor pedir mais de um porque se um não acontecer quem sabe o outro. Melhor, vou pedir onze, onze coisas, uma coisa pra cada ano que eu vivi, um pedido pra cada férias que eu vivi. Quero que a professora Gilda leia pra sala como é que foram os meus dias de férias. Não, não, nunca, que ideia é essa, morro de vergonha. Quero ver a professora Gilda passando creme hidratante nas pernas, nos pernão. Não, não, isso já não é um pedido, mas um delírio. Já sei, quero um amigo, esse é meu pedido. Um amigo que eu possa contar sobre creme hidratante e doce de mocotó. E vamos assistir A Lista de Schindler e entender os motivos, porque acho que é por isso que as pessoas se juntam, pra entender as coisas do mundo, sem mentir. E eu vou ouvir tudo o que ele tem pra me contar. Com as mãos no queixo, prestando atenção.

--

--

Jordana Machado
Jordana Machado

Written by Jordana Machado

[Literatura entre colchetes] Instagram: jordanamachado1

Responses (1)