[COM A AMABILIDADE QUE CONVÉM]

Jordana Machado
2 min readMay 26, 2020

--

Em janeiro de um Rio de Janeiro remoto e amarelado, batia acelerado o jovem coração do menino Aluísio. A maleta marrom novinha, o caminho decorado de quando a alameda Vicente cruza a Martírio dos Reis, e o pai arrancando a última folhinha do calendário que estampava uma foto da Pedra da Gávea; colocou um novo no lugar, e quem iria seguir viagem com eles pelo resto do ano era o relógio derretido do Dalí. Uma mensagem subliminar, uma mensagem subliminar! Aluísio ouvia o pai, numa mistura de brado e auto reflexão em voz alta, enquanto acompanhava o ritual.

O pai enxergava mistério em tudo, e de tudo era capaz para desvendá-los. Imaginava que as chaves que carregava penduradas no cós da calça, representavam cada uma de suas descobertas. As chaves abriam as portas do entendimento. Aluísio amava esse pai que era um guardião do tempo e dos segredos. Ouviu o anúncio: semana que vem começa a escola, meu filho.

O brasão, o sino, as maçãs, as limonadas, os teoremas e as classes gramaticais, as saias e os suspensórios. Elementos entre tantos outros que salpicavam a formação do cotidiano, não seriam mais sedutores do que o específico e insubstituível caderno encapado com papel pardo. Em sua memória, o item se consagrou e se cravou como participante de todas as cenas e coisas, boas e ruins. Não importa o que acontecia ou aonde, o papel pardo apareceria. Enrolando os pães, escondendo as bebidas alcoólicas nos filmes, embrulhando os livros que chegavam em sua casa, cobrindo uma pessoa dormindo na rua, cobrindo uma pessoa morta, cobrindo uma vitrine em reforma. Se o papel pardo cobria a vida inteira, Aluísio entendeu que precisava ter seu próprio pedaço de papel pardo para escrever sua história.

Nesse caderno, escrevia tudo o que sabia e tudo o que não sabia. Ter certeza ou duvidar lhe eram igualmente importantes, pois ambas as sensações compunham o amor e ódio necessários para desbravar a realidade. Deixe-me ver o que é isso aí que você carrega pra tudo que é canto! O pequeno o assaltou, e com os dedos melecados de uma mão que segurava um doce de abóbora, deixou três pequenas esferas alaranjando o papel pardo do caderno. Neste momento, entendeu porque os adultos tanto se indagavam a respeito de porque será que algumas pessoas tinham rompantes como reações à ocasiões que pareciam tão, tão, tão, não dá pra entender. Dá sim, me dá isso aqui agora, me dá, devolve isso aqui e nunca mais ouse, não ouse.

Ontem, em casa de Aluísio, era dia de festejos e presentes. Passou o dia entre compras, papéis, barbantes. Quantas vezes acometido pela dó de abrir uma encomenda, tão charmosa e bem empacotada, os vincos bem vincados, as voltas do barbante feito laços de camisola. A maneira como desbastavam os embrulhos, ceifando tudo feito feras. O coração de Aluísio descompassado como naquele janeiro. Embalado pelas certezas e dúvidas que não mudam como mudam os calendários.

--

--

Jordana Machado
Jordana Machado

Written by Jordana Machado

[Literatura entre colchetes] Instagram: jordanamachado1

No responses yet