[COISAS APARENTADAS]

Jordana Machado
4 min readAug 2, 2020

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Parado ali diante daquelas pessoas chocadas a meu respeito, eu só podia pensar que nada havia sido planejado, tudo realmente sem querer, e foi assim que alcancei um nível existencial superior ao ver materializada a proeza de ficar surpreso com algo que eu tinha feito. Essa é uma das tantas diferenças que me separam do tipo de pessoa que tranquilamente você passearia junto pelos corredores dos mercados todos, travando amenidades sobre ser mais acertado o amendoim japonês ou uma clássica azeitona, de modo que passariam rapidamente por um quase imperceptível desacerto entre as verdes ou as pretas, o que seria facilmente deixado de lado visto que é preciso não esquecer os limões, corre lá, pega uns vinte que hoje eu quero chapar de caipirinha para me recordar como é sair pra comer uma inocente pizza num rodízio de pizza, e eu odeio que aniversariantes me chamem pra comer pizzas em rodízio de pizzas porque eu penso que, ou você tem grana pra fazer uma festa ou você não tem e eu não tenho absolutamente nada que ver com isso; primeiro que eu nunca consigo comer o quanto acredito que meu dinheiro teria valido, e segundo que esse tipo de festividade parece inocente mas eventualmente você pode acordar no dia seguinte e perceber que isso no seu cabelo é areia de praia porque você foi parar na praia após ter subido numa moto usando uma saia, e após alguns minutos debatendo acordos e desacordos com seu alterego questiona-se porque nos filmes a coisa termina em las vegas e no filme da sua vida as coisas terminam em peruíbe.

Eu não passeio em corredores, nem como petiscos, pizzas, ou bebo caipirinha, tampouco sou convidado para festas ou para garupas de moto. E justamente por ter um pequeno histórico onde figuram um sem número de pessoas chocadas comigo, o que não me deixa surpreso, mas naquela noite eu fiquei realmente surpreso, porra eu fiquei surpreso demais a ponto de cogitar me desculpar, o que passaria a ser um segundo motivo de surpresa, isso, surpresa, não chegaria a ser um auto choque, o choque fica pras pessoas. Surpresa é um tipo mais leve de choque, e creio que ele seja um adjetivo mais adequado para dimensionar o que se sente sobre si mesmo porque um choque, nos meus termos, é um movimento aniquilador para se ter. Alguém entrando em choque consigo é o castelo de cartas da sua vida mental se esvoaçando pelos ares de dentro da sua cabeça, as réguas de medir normalidade e adequação se esfarelam devido a um acontecimento propulsor que te fugiu do controle, e você está vazio, zerou, como se tivesse acabado de nascer. Eu fui o acontecimento propulsor daquela noite, logo eu que tinha as noites tão calmas, tão certas, bem diferente do que eu sempre soube que pensavam.

Talvez acharam que eu estivesse num bom dia, ou num dia singular, já que não combinava muito comigo apoiar meus cotovelos no muro e olhar a rua como uma pessoa qualquer, acariciar o gato apoiado no mesmo muro, eu tinha um gato, eu fazia carinho, eu olhava a rua, eu parecia normal como uma pessoa qualquer. Confesso que se eu soubesse que eles estariam sentados na calçada em frente minha casa como sempre costumam estar, talvez tivesse adiado essa ida até ali fora, mas como da minha porta não tenho uma visão completa da rua, acabei indo e acabei ficando bem mais próximo deles do que nunca, pois nossa rua é bem estreita. Eles só me veem passando, e eu só os via ali parados, e nunca imaginaria ter que dividir o oxigênio com os seres de calça xadrez, assim como também acho difícil terem imaginado me ver ali naquele momento ora ora vamos ver o que é que as pessoas tanto fazem na rua. Meu irmão estava ali também. Planejei ficar no muro uns 30 segundos, tempo que julguei adequado para não parecer intimidado ou grosseiro. Senti o peso do olhar dele sobre mim enquanto tentava me concentrar no gato. Possivelmente um olhar de quem cogitou estar sendo vigiado, coisa que eu jamais veria sentido em fazer com pessoas que num mês usavam calças xadrez, no outro vestiam mangas compridas no sol e no outro alguma outra coisa que foge ao meu interesse e compreensão. Eu até compreendia, mas não me interessava em passar desse ponto. Senti o cheiro da caipirinha. Um deles me fez um sinal com a mão e disse ô chega aí, vem tomar uma. Os 30 segundos foram demais, na próxima vez vou diminuir pra 15, e aquele chamado me fez perder as contas do tempo por completo. Me senti como aquele menino que pela primeira vez é chamado pra jogar bola. A diferença é que dessa vez eu não tinha sido a última opção, mas a diferença mais importante é que dessa vez eu já não me importava mais. Abri o portão e fui.

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Written by Jordana Machado

[Literatura entre colchetes] Instagram: jordanamachado1

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