[CIRCULAR 8]

Jordana Machado
4 min readAug 8, 2017

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O que acontece no meio do caminho?

As pessoas andando na rua com a maior calma do mundo.

Eu preciso andar na rua com essa calma do mundo.

Eu preciso andar no caos das ruas do mundo.

As pessoas reclamam quando pegam o ônibus às dez e ele está cheio.

O que é que toda essa gente ainda faz na rua uma hora dessas?

O que é eu que eu estou fazendo na rua uma hora dessas, é o que me pergunto também.

Eu estou na rua porque fico há 3 horas de distância de praticamente qualquer coisa, lugar e pessoa.

Geralmente eu tenho que ir, porque o lugar está aqui, mas as coisas estão lá, e pouca gente quer vir.

As pessoas ficam com medo quando pegam o ônibus da meia noite e ele está vazio.

Aonde está todo mundo?

Acho que todo mundo já deve estar em casa.

Eu não queria estar na rua uma hora dessas.

Eu não queria sentir tudo isso por causa do horário que o relógio marca.

O relógio marca as horas de um tempo que não é o nosso.

Não temos tempo, não podemos ter cada um o seu tempo.

O tempo quer que a gente vá igual, nos mesmo lugares, pelos mesmos motivos, e a gente vai.

No mesmo ônibus, no mesmo silêncio, no mesmo sonho.

Quando o ônibus está vazio e entra um homem a gente fica em dúvida se fica feliz ou com medo.

Se ele fizer contato visual é medo.

Se ele sentar perto demais é medo.

Se você descer antes e ele continuar no ônibus é felicidade.

Se ele descer rápido é como eu gostaria que ele tivesse ficado um pouco mais, como eu gostaria que ele tivesse me dado mais da ilusão de que a presença dele aqui poderia significar alguma proteção.

Perdi meu ônibus e agora estou no último carro que faz esse trajeto.

É um circular.

Esse tipo de ônibus só existe em pouco lugares da cidade, geralmente nos mais afastados.

Ele dá voltas e voltas e mais voltas.

Sobe todo o morro, depois vai contornando as ruas todas, fazendo umas curvas impossíveis.

Mercadinho, casa de ração, sacolão, um pessoal jogando dominó, um senhor recolhendo papelão.

Pizzaria e bar, aqui tem muita pizzaria e bar.

Vocês já notaram como a pizza está cara hoje em dia?

Eu fico me perguntando como é que uma massa e uns pedaços de queijo por cima podem custar cinquenta reais.

Tem gente dentro do bar mas a porta de aço está abaixada porque é perigoso, pode ter chacina.

Pista de skate, mais uns mercadinhos, os porteiros dos poucos prédios passam a noite sentados no sereno, e algumas pessoas já estão na fila do postinho, agora chegou o shopping.

A enchente chega no shopping com as chuvas de verão.

Quando o shopping chegou disseram que ia chegar emprego pra todo mundo.

No shopping chegou consultório médico, loja que vende colchão e academia.

A última coisa que chegou foi uma livraria.

Não é a melhor livraria mas já é alguma coisa, pelo menos tem livros, qualquer livro é bom, até os ruins.

Existe banca de jornal que vende chiclete, brinquedo e crédito pra celular, mas não vende jornal.

Parece que hoje em dia há uma certa dificuldade em nomear as coisas, então chamamos carência de amor, lanche de hamburguer gurmê, notícia de revista Veja e mercadinho de banca de jornal.

Tem gente que não tem tempo de ler, outras não sabem ler, outras não tem paciência, outras não acreditam no que leem, outras acreditam até demais.

O preço das coisas que podem ser lidas é caro, um livro custa caro, o preço do conhecimento também é alto.

Quando não se sabe o motivo das coisas dói, quando se sabe também dói, parece que tem dias que é melhor nem saber de onde a bala vem.

Esses dias a Vanessa dos Santos, de 11 anos, foi baleada na cabeça e ela estava dentro de casa.

Tem gente que sabe bem de onde a bala vem.

Tem dias que nem perder o ônibus pode te salvar.

Teoricamente os carros nas ruas obedecem as leis de trânsito, e os pedestres também têm suas leis.

São quatro e meia da manhã e daqui a três horas estaremos aonde o tempo mandou a gente ir.

São quatro e meia da manhã e estamos descendo o morro.

Já reparou como os homens costumam carregar as mochilas?

Eles não colocam nas costas, eles carregam como se fosse uma sacola de mercadinho.

Eles vão descendo e fumando, alguns escutam as notícias naqueles rádinhos de ouvir jogo de futebol, alguns vão escarrando.

Algumas mulheres vão descendo de rasteirinha porque não é fácil descer de salto alto, e devido a pressa a sola vai batendo no calcanhar e vai fazendo um barulho.

A nossa lei é a seguinte, nesse horário ninguém anda perto de ninguém, mas é uma distância que dê pra perceber que no fundo está todo mundo junto ali.

Quando se aproximar fica inevitável as mulheres costumam fazer algum barulho para que a outra tenha noção de que é uma outra mulher que vem chegando, pode ser o barulho da sandália ou até uma tosse.

A nossa sintonia é tão grande que até pela tosse a gente se reconhece.

Homem não, homem não tem noção, homem é sem noção.

Eu queria morar no Jd. São Judas Tadeu, a maioria dos ônibus que passam vão pra lá.

Mas eu moro no Pq. Marabá, e esse é o Circular Nº8.

Na verdade eu queria morar naqueles prédios do centro, com aquelas janelas grandes e bonitas.

Esses municípios aqui da Grande São Paulo são chamados de cidades dormitórios, porque as pessoas passam o dia todo fora trabalhando e só voltam pra dormir.

Na verdade aqui é a borda de periferia, a periferia da periferia, e só dá tempo de cochilar, mas não muito porque senão o cachimbo cai.

Nossa hoje foi muito cansativo, eu estou morto, eu estou morta.

Todo mundo morre um pouco todo dia.

A hora do retorno pra casa pode ser ressuscitar um pouco em alguns casos.

Mas tem gente que nem tem pra onde voltar.

Esse é o circular.

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Jordana Machado
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[Literatura entre colchetes] Instagram: jordanamachado1

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