[ATÉ ALI EU ERA PEDRA]
‘Penhascos, desfiladeiros e outros sonhos de fuga.’
Me chamam de Pedrinha, mas meu nome mesmo é Bento. Sou pernambucano, meio quieto, torço pro Náutico, gosto de chuva e não tenho unhas nos dedos das mãos. Sei ler um pouquinho, escrever também sei um pouco. A coisa que eu acho mais bonita no mundo é o silêncio. E a coisa que acho mais feia é guardar alguma coisa. Tenho oito irmãos que estão em algum lugar que não sei direito aonde. Minha comida preferida é carne de sol, meu café é sempre sem açúcar e todo dia vinte e um eu sinto uma vontade louca de chorar.
Parece que minha mãe me deu esse nome por causa do São Bento. Dizem aí que esse santo era de família rica e passou muitos anos sozinho numa gruta lá no alto de um penhasco. Mas depois de um tempo ele pensou que viver com as outras pessoas era bem melhor e começou a ensinar isso pra todo mundo. Eu nunca fui rico, parece que nem vai dar tempo de ser e talvez seja melhor assim. Toda a vida o dinheiro deu só pra comprar o de forrar a barriga e o pulmão, porque minha farinha e meu fumo são sagrados. Eu nunca quis ficar sozinho, mas muitas vezes acabei escolhendo isso. Hoje eu não queria estar sozinho, mas foi assim que eu acabei ficando. Quando fui perceber todo mundo tinha ido embora, então eu também tive que ir.
Acho que hoje faz doze anos que eu arranco rochas e minerais numa pedreira aqui no Paraná. No começo desse ano aparecemos até no jornal por causa de uns homens do governo que vieram aqui. Eles vieram dizer que algumas coisas não estavam como deveriam estar, eles vieram dizer que algumas coisas não eram como deveriam ser. Só que a gente já sabia disso há muito tempo. O governo sempre chega atrasado. E isso a gente também já sabia. Muitos dos meus amigos da pedreira não ganhavam nada pra trabalhar ali, só a comida. Dividi muito meu fumo com eles, mas sabia que isso era errado, sempre pensei que o mais acertado era todo homem poder ir comprar seu próprio fumo. Mas eles não ganhavam dinheiro e nem podiam ir com a gente nos bares da Vila Diamante. Tudo ali era meio esbranquiçado por causa do pó que subia, e só quando chovia era que a gente via esse branco virar cinza. Nossos cabelos iam ficando branco e cinza, nossas unhas caíam, nosso choro escondido também. Tudo caía, menos minha fé. São nossos pés que fazem a gente ir pra lá e pra cá, mas na minha história quem me levou foi minhas mãos. Nas minhas mãos tem força e fraqueza. É com elas que eu trabalho, é com elas que eu rezo, foi com elas que eu sobrevivi, foi com elas que eu matei quando tive de matar.
Nas raras noites de calorão, quem podia sair não perdia tempo, e pra quem não podia eu sempre dava meu jeito de deixar escondido o radinho de pilha emprestado. Já que eles não podiam ir ver o mundo, ouvir o rádio era uma maneira de fazer isso. Mas sempre dizia pra eles acreditarem mais nas músicas e no futebol do que nas notícias. Todo mundo gostava de sair comigo porque eu sabia ler o que estava escrito nas placas, então a gente se perdia pouco.
Na Vila Diamante o que não faltava era gente perdida. E a coisa ia aumentando conforme a noite se estendia, os copos de pinga se esvaziavam e o som aumentava. Eu tinha me acostumado muito a ouvir o barulho repetido que as pedras faziam, era o dia inteiro aquele som no meu ouvido, até quando eu dormia aquela zuada aparecia. Então, quando eu ouvia alguma coisa diferente do que estava acostumado era na hora que eu ficava alerta, prestando bem minha atenção. Aí que teve uma vez que escutei um negócio que parecia um filhote de gato sofrendo mas não era, entende. Parecia, mas não era. Aquilo fez meu coração bater disparado, minha barba arrepiou toda, levantei e fiquei zanzando, seguindo aquele sofrimento. E foi de trás de um caminhão que eu vi. O diabo do sujeito era tão alto e forte que ele segurava a menina por debaixo do suvaco. Ele chupava as tetinhas miúdas dela como quem levanta uns fiapos de macarrão da água quente pra vê se já está na hora de tirar do fogo. E ela com a cabeça pendurada pra trás, num chorinho de gato, com as duas mãos fechadas, fazendo força. Eu não dei por mim e saí em disparada na direção dele. Dizem que não se deve atacar ninguém pelas costas, mas aquele homem não merecia honra, nem a minha e nem a dele, porque se ele achava que fazer o que estava fazendo era coisa certa, então ele que sustentasse isso, mas não ali, no inferno. Cravei meu punhal nas costas dele como quem enfia a ponta da faca no bolo pra ver se já está na hora de tirar do fogo. Não deu tempo dele chorar, mas eu chorei e a menina começou a chorar mais ainda. Pendurei ela no meu pescoço como quem coloca um cachecol e saí correndo pro meio do mato.
Essa foi a primeira vez que eu me perdi por aquelas bandas. Quando acordei já tinha amanhecido e ela ainda dormia que nem um tatu bola encostadinha numa pedra. Fiquei um tempo ali olhando, e me veio a certeza de que aquele tatuzinho seria a pedra mais pesada que eu teria que carregar dali pra frente. Aquilo ali era uma pedra que ia quebrar a pedra que eu tinha me tornado, só que eu ainda não sabia disso. Continuei carregando o tatu-cachecol até minha casa, e pelo caminho fui pensando que nunca ter contado pra ninguém aonde eu morava foi a melhor coisa que eu poderia ter feito nessa vida. Dei um banho nela com pedaços de pano, fiquei olhando como ela era pequena. Ela fez tanta força com as mãozinhas fechadas que as palmas das mãos ficaram com uns machucados bem feios. Percebi que as unhas dela também estavam caindo e me assombrei, puxei uma com cuidado e demorei pra perceber que eram unhas de mentira.
Ela me contou sua história e nunca me perguntou o que tinha acontecido naquela noite. Talvez ela soubesse de alguma forma, mas eu mesmo não contei, não conseguia. Nunca mais voltei na pedreira. Passamos a vender frutas na última estrada da cidade. Uma vez por semana a gente ouvia o futebol no rádio e quando saia um gol do Coritiba ela punha a cabeleira preta pela janela e gritava e ria ao mesmo tempo. Na ausência do meu Náutico, aquilo me fazia bem. No fim de um dos anos juntamos umas notas e fomos na capital, fomos no estádio. Eu só precisei defender ela naquela primeira noite, pra nunca mais. Na saída do jogo um desavisado achou que podia encostar nela sem ela querer, pois foi que ela ergueu a mão ainda miúda e deu um soco certeiro no queixo do fulano, que foi aonde ela alcançou. Me puxou pela mão e gritou pra eu correr e eu corri. Olhei pra trás e vi que também corriam na nossa direção, e eu aproveitei a confusão pra gritar ‘vai, Náutico!’. Eu já era meio velho pra correr tão rápido, mas na hora da necessidade a gente virava um cachorro do mato. Nesse dia quem me carregou foi ela.
E assim a gente foi se carregando por um tempo. Quando era hora de dormir ela queria me carregar pra mesma cama, e eu me carregava pro lado oposto, era melhor assim, isso era o certo. Ela era da cidade grande, era muito sabida, ela sabia de muita coisa, aprendi muita coisa com ela. Ela me fazia pensar em coisas que eu nem sabia que existia. Às vezes eu achava que nem desse planeta ela era. Depois que ela apareceu o mundo não era mais do jeito que eu imaginava. Nem eu mesmo era mais do jeito que eu sabia que eu era. Ela me ensinou a falar as coisas, o silêncio já não fazia mais sentido e nunca mais faria.
Depois daquela noite eu também nunca mais escutei ela chorar, mas no dia que ela foi embora ela chorou, e eu também. Foi no dia vinte um de algum mês que ela foi embora. De manhãzinha passamos um café, o meu com açúcar, e o dela sem. Comemos carne de sol, e lá fora fazia sol, fazia calor, que nem no dia que ela chegou. Depois desse dia eu só tomo o meu café sem açúcar, que é pra me lembrar dela. Depois de muitos anos fui no correio e tinha uma carta pra mim. Dentro do envelope tinha uma fotografia das mãos dela e atrás estava escrito bem assim: ‘O giz também fez as minhas unhas caírem.’ Ela tinha virado professora. Peguei o primeiro ônibus que ia saindo, bati palma no portão dela e o peso daquele abraço levantou a poeira da rua e dos móveis. Ela sorriu quando pedi meu café sem açúcar.
Contei que naquele dia vinte e um eu construí duas cadeiras, e como eu era sozinho só usava uma delas. E o tempo foi passando, as cadeiras foram pegando chuva, foram pegando sol, vento e poeira. As cadeiras foram pegando tempo. Me lembro que quando era mais moço eu costumava dizer que não queria me apegar a ninguém, costumava pensar que ainda havia muito tempo. O tempo pode pegar a gente e as coisas de um jeito bem maluco. Passei doze anos quebrando pedras, depois que ela foi embora passei mais doze anos sentado sozinho numa cadeira, guardando o lugar do vazio dela. Não me pergunta como, mas eu entrei naquele ônibus com duas cadeiras debaixo do braço.