[ATÉ A PÁGINA 2]

Jordana Machado
2 min readOct 13, 2019

--

Quando cheguei estava tudo do seu jeito. Havia uma chaleira vermelha aonde eu comecei a esquentar a água do chá que tomo de manhã. A janela ganhou uma tela, meus livros fizeram companhia para os seus livros, meus dedos se enfiaram nos cachos dos seus cabelos. Há quatro anos toquei a campainha e hoje é o último dia que aperto o botão do elevador com chaves nas mãos. Achei que as fitas adesivas que colei nas paredes e móveis fossem placas de trânsito que sempre nos mostrariam o caminho. A descarga quebrou. Na minha ausência eu te deixo as risadas dos vizinhos que chegam pela janela da cozinha. Quando adoeci você me levou para casa como quem resgata um bicho atropelado na estrada. Foi a melhor carona da minha vida e eu deixei os estofados cheios de pêlos de gato. Durante a vida carregamos coisas pra lá e pra cá. Você é a única caixa com um laço em cima. Obrigada por tudo.

Quando cheguei estava tudo do seu jeito. Havia um único copo de plástico aonde eu matava a minha ressaca com goles de água morna da torneira. A carteira ganhou um ramo de arruda, minhas cartas fizeram companhia para os seus silêncios, meus braços se enrolaram nos seus abraços frouxos. Há seis meses eu disse oi e hoje deveria ser o último dia que tento te entregar tudo o que você nunca quis. Achei que as minhas palavras pudessem ser placas de trânsito que te mostrariam o caminho. O celular quebrou. Na sua ausência você deixa um relógio que continua a sinalizar um tempo que não existe. Quando adoeci você me atropelou e me jogou na estrada. Foi a maior idealização da minha vida e eu deixei os dias cheios de reticências. Durante a vida carregamos coisas pra lá e pra cá. Você poderia ser uma caixa com um laço em cima. Arrasto sacos de lixo. Me deixe a paz.

--

--

Jordana Machado
Jordana Machado

Written by Jordana Machado

[Literatura entre colchetes] Instagram: jordanamachado1

Responses (5)