[AS FIGURAS IMAGINÁRIAS]

Jordana Machado
4 min readMay 31, 2020

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Indo pra aula de manhã, estudar no período da manhã, parece que é a melhor coisa a ser feita, dizem alguma pesquisas. São tantas leis e dicas pra seguir, ou não seguir. Leis fantasiadas de dicas, veja, é uma sugestão nossa, frase que precede um grande você está fodido se não fizer. Dicas fantasiadas de leis, na verdade você tem que fazer de qualquer jeito, mas não pega nada se você não fizer às vezes. Tinha preferência por fazer o trajeto a pé, mas minha mãe não pensa assim. Como pensa a minha mãe? Eu só chuto, arrisco. Vai de ônibus, é mais rápido, é mais seguro. Isso era uma lei fantasiada de dica. A raiva que só se sente às 6 da manhã poderia me fazer ganhar quantos cavalos de velocidade nas pernas? Quais são as estatísticas sobre acidentes com ônibus e sobre as maldades que podem acontecer dentro de um ônibus? Sigo andando pra escola todos os dias. Isso era uma dica fantasiada de lei. Cheguei, fumo um cigarro, nunca falto, nunca me atraso. Estou sempre no lugar certo, na hora certa, mas ainda não conheci as vantagens disso. A fileira da parede da janela tem 10 carteiras, a minha é a número 5, há 3 anos. Não me atraso, nem me adianto, pontual, na média, sou 5/10, não grito, mas também não faço silêncio, em outras palavras: invisível. Aula de Português.

A linha do tempo da formação da instituição escolar no Brasil, o século XIX na europa, o Brasil, jesuítas, império, independente, república, ditadura, entreditaduras, hoje, sexta-feira, 01 de julho de 1997, festa do sorvete, campeonato interclasse, quem quer horta, quem quer grafite, quem é do grêmio, cocaína, anorexia.

Essa professora era nova na escola. Penso que ela conquistou a sala no primeiro dia, quando usou o próprio cachecol para apagar a lousa e nos disse pra ficarmos tranquilos pois não precisaríamos ser o Drummond. O alívio nas costas de quem não teria que carregar as pedras de um caminho deste tamanho. O brilho embrionário e megalomaníaco nos olhos de quem ganha uma possibilidade, vai saber, quem sabe, porque não, afinal? Penso que ela me conquistou no primeiro dia, confessando que era a primeira vez que dava aula na vida, mas que já estava ali na beira da morte, com vontade de fumar e vomitar, mas que se tudo desse certo nos próximos 50 minutos, só nos próximos 50 minutos, era tudo que ela precisava pra vislumbrar um novo mundo onde não seria obrigada a ser Paulo Freire, mas quem sabe, porque não?

Eu ficava me perguntando coisas sobre ela. Será que ela fazia palavras cruzadas? Gostava de post-its? Escrevia com lápis ou caneta? Fumava enquanto escrevia, assim como os grandes escritores? De dia ou de noite? Sentada ou de pé, como Hemingway? Será que ela imaginaria que eu conheço Hemingway? Eu só tenho 17 anos. Se tem uma coisa que adolescente é, essa coisa é precoce. Ser precoce não é um adjetivo, como costumam dizer. Ser precoce é o estado natural de todos nós. Desde a ejaculação até a vontade de mastigar o mundo pra entender tudo de uma só vez. Será que ela tinha mesmo essa facilidade fascinante de aceitar e demonstrar sua vulnerabilidade humana, nem que fosse atrás da escrita em terceira pessoa? Uma vez li um conto do Tchekhov* onde ele fala sobre um cachorrinho que se perdeu do seu dono.

Ela usa um avental verde. Acho que nem é tanto pra não sujar a roupa, deve ser mais pra que ninguém fique olhando pra sua bunda quando se abaixa pra usar até o último espaço que a lousa tem. Como ela é muito alta e a lousa muito baixa, às vezes reclama dessa incompatibilidade que gera esse desconforto operacional. Informa que em breve vai tirar a cabeça gigante da frente pra que se possa enxergar o que está escrito. Sugere que a gente vá tomando nota junto com ela, pra ganharmos tempo. Se ela pedir pra eu me jogar de um precipício eu me jogo. Ganhar tempo com ela significava ela futucando nossas cabeças de uma maneira que nunca tínhamos experimentado. Tudo nela fica bonito. Os bolsos grandes do avental, as mãos girando no ar, a letra feia, o isqueiro fazendo volume no bolso do avental, o avental amassado, as unhas roídas, a boina marrom, a cabeça gigante, ela defendendo as variações linguísticas como uma advogada, ela parafraseando Caio Fernando Abreu e dizendo que remem, remem, porque ver vocês remarem me faz querer remar também.

Ela jogou um pedaço de giz na minha cara. Eu deveria ficar com raiva, mas dou risada e tomo um susto. Meu coração passa a bater a 232km por hora. Ela me pergunta se estou aqui. Mentalmente respondo que não porque estava escrevendo a biografia dela, mas visualmente respondo com uma cara qualquer que a faz contextualizar rapidamente o que tinha se passado na Terra nos últimos 20min, e fala o seguinte: como bem sabemos, Casa do Norte é um lugar maravilhoso onde podemos comprar mel, farinha e carne de sol, e não há nada mais poético no universo do que dizer que um alimento é ‘de sol’, dito isto, me responda, se existisse uma Casa do Sudeste, o que venderia lá? Respondo que venderia copo americano, atestado médico e pizza. Ela soltou a gargalhada mais gostosa que a audição humana já foi capaz de captar. Quero ser Carlos Drummond de Andrade.

*[TCHEKHOV, Anton. Kaschtanka. IN. Kaschtanka e outras histórias de Tchekhov. Boa Companhia, 2015.]

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