[A CANTORA E AS BOLAS DE GUDE]

Jordana Machado
3 min readJul 30, 2017

--

A sensibilidade das crianças quebra a corrente da rotina.

Antes que fechassem as portas do carro, uma já esperada corrente de ar gelado lhe arrepiou os pelos do braço.
Pela janela suja, observava. Carros, pessoas, sacolas e bocas.
Algumas bocas cerradas, outras se movimentavam sem emitir ruído.
Gentilmente, ajeitou-lhe a chupeta.
Eles estavam a sós.
E por algum motivo desconhecido ou encoberto, ela se sentia envergonhada.
Aqueles olhos azuis feito bola de gude, traziam de algum lugar coisas que ela tentava entender. Entender que lugar era esse, e que coisas eram essas.
Aninhado por roupas, cintos de segurança e cobertor, ele era só movimento. Braços e pernas agitavam-se no ar em direções opostas.
A respiração rápida dava vida ao desenho estampado no macacão.
Lábios rosados e sempre úmidos revezavam-se entre sorrisos e sons incompreensíveis.
E novamente, os olhos.
Os olhos-bola-de-gude.
Curiosos e atentos se remexiam por todos os lados, o tempo todo.
Exceto quando lá pelas tantas da madrugada, adormecia.
Após quase enlouquecer de amor sua zelosa mãe de primeira viagem.
Muitas situações ativavam o pequeno rapaz, mas poucas diminuíam sua inquietude.
No rádio, uma troca precisa de estação e o início de uma melodia conhecida.
Cantarolou baixo a letra da música, procurando dissipar o velho pigarro da garganta.
Enquanto procurava em sua voz uma afinação satisfatória, não conseguiu mais fingir que estava sozinha em seu quarto.
Lembrou imediatamente que estava acompanhada, e corou.
Fitou-o de modo lento, e as bolas de gude fixaram-se em seu rosto certamente desalinhado.
Notou que as atividades sempre elétricas de seu corpo miúdo cessaram, agora, ele era somente atenção.
Como se não houvesse maneira de fugir e controlar, a voz foi aumentando o volume ainda que receosamente.
Meia dúzia de frases depois, ela cantava como quem possui coragem de encarar uma grande platéia.
A garganta perdeu a arranhadura, o som deslizava suave e depositava na corrente sanguínea de ambos, nota por nota, palavra por palavra.
Mesmo quando ela arqueava a cabeça em busca de um novo tom, o olhar continuava pousado e estático um no do outro.
A maneira como cada palavra era entoada, expressava o que lhe ia na alma. Todas as letras amontoadas que atravessavam os dentes dela, significavam o seu maior desejo.
E de uma forma inusitada, surpreendente e emocionante, ele parecia entender aquilo tudo.
Ao vê-la corar, ele sorriu. Querendo dizer que já sabia apreciar a discrição.
Ao vê-la desafinar, sorriu novamente. Querendo dizer que já sabia ser gentil.
Chegado o refrão, ao vê-la com os olhos úmidos como os seus, ficou sério. Querendo cantar com ela, se pudesse, cada palavra daquela canção.
Assim, ele afirmaria que sim, a chuva iria passar.
Que não importava quantas vezes mais o olhar negro fitasse o cinza, o tempo e a janela se abririam.
E lá fora, o sol seria somente dela.
O comercial de restaurante e comidas típicas anunciou o fim do som, e do novo segredo entre eles.
Que mais tarde, seria compartilhado com a genitora de tamanha graciosidade.
Baixou os olhos e depositou em sua testa um beijo agradecido.
Diante de uma careta inesperada, ele gargalhou como de costume.
Querendo dizer que já sabia quebrar a tensão quando necessário.
Enquanto uma nova corrente de frio não chegasse com a abertura das portas, ele se divertia com os cachos de cabelo da cantora de segredos, e ela já imaginava quantas e quantas vezes esse episódio seria lembrado.

--

--

Jordana Machado
Jordana Machado

Written by Jordana Machado

[Literatura entre colchetes] Instagram: jordanamachado1

No responses yet